Carnaval: poder libertador de se entrar em contato com mundos imaginários, reprimidos ou projetados

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Meu primeiro Carnaval não é o que tenho registrado em minha memória. Quando eu tinha menos de 10 anos fui sozinho à matinê do Santana Atlético Club, na rua Borba Gato, ou seja, duas ruas acima da rua onde eu morava. No ano anterior, do qual não me lembro nada, suponho que me diverti muito, pois queria estar dentro daquela matinê. Eram outros tempos, onde não era perigoso uma criança ir duas, três, dez ruas longe de sua casa. Podia ir e voltar em paz.

O que me marcou do meu primeiro Carnaval é que não pude entrar no baile. Tinha que pagar pelo ingresso. Eu nasci no Santana, praticamente. Lá cortava cabelo. Eu sou xará do dono, Djalma Coelho. Enfim, fui barrado no baile de Carnaval que fui sozinho. O que não me impediu de entrar no baile, imagino que alguém me viu e me levou para dentro, afinal eu “morava” no clube, eu era do clube.

Ainda criança, minha vontade – essa proibida veementemente pelo meu pai – era de almoçar na Feijoada do Vadeco. Tinha de pagar, obviamente. Era o dinheiro mínimo que entrava para os custos daquela festa. Eu adorava estar no meio daquela cozinha na rua Baltazar Fernandes, caldeirões grandes, couves fatiadinhas bem fininho. O Vadeco, no final, sempre me servia um prato de feijoada. Até hoje esse é um dos meus pratos preferidos. Outra vontade era desfilar na escola do Vadeco (que depois foi batizada de Show Brasil, que carrega até hoje). Ele até deixou que eu pegasse, certo Carnaval, no agogô. Mas o mestre da bateria me escorraçou de lá de tão incapaz eu era de acertar uma batida no ritmo da escola.

Adolescente, entendi que sempre gostei de samba, do batuque, mas o Carnaval nunca foi de fato algo de minhas entranhas. Minha prima – ultimamente tenho tido algum contato com ela – era destaque na Escola de Samba Mocidade Alegre em São Paulo. Ela é filha de uma das irmãs do meu pai. Nunca soube o que minha tia pensava sobre essa intensa participação de minha prima numa escola de samba, mas meu pai tratava quase como um assunto proibido. Algo a não ser comentado. Ele desaprovava por completo um membro de seu sangue em tal festa pagã.

Quando entrei no Senai, tinha 14 anos, ganhava meio salário-mínimo como estudante. E isso, hoje vejo, praticamente me emancipou. Eu decidia o que fazer com o “meu” dinheiro. E lembro de ser assíduo frequentador do Zé da Batida, no Sal da Terra e Depois Bar. Nilo estava diariamente no bar, e seu sócio, Simonetti, apenas na sexta. Nilo era Brizolista (alguém se lembra da importância de Leonel Brizola no movimento político brasileiro?) e amigo de Armando Oliveira Lima. Armando era intelectual e dono da E.L.U. que  editou o primeiro livro de Flaubert que lembro de ter lido na vida. Era uma pequena editora sorocabana de livros. Armando era amigo do seo Wladimir dos Santos, o primeiro grande influenciador sobre minha formação intelectual. Eu, aos 16 anos, me vi como ajudante de garçom de Armando nas noites quentes e agitadas que reunia a nata de pessoas que gostavam de ler, cinema e política de Sorocaba. Fernandinho, que ainda está no Depois, trabalhava sozinho durante a semana. Na sexta e sábado, Armando estava com ele e quando os dois não davam conta, eu me juntava a eles de um modo atabalhoado, me lembro.

O Bar Depois tinha a concorrência do Armazém, local onde privei da amizade de Ari Madureira (o grande escritor sorocabano, autor dos textos de Chico Anysio no Fantástico), do cartunista Peron. O BêCarlos era o único frequentador dos dois bares.

Embora reduto da Esquerda, nem o Depois e muito menos o Armazém eram bares do PT. Havia petistas ali, como fregueses, obviamente. Mas o pensamento predominante era o da intelectualidade, o de Darci Ribeiro. O PT, ao menos o sorocabano, sempre foi muito mais sindicalista. E isso dividia a freguesia.

Sérgio Carneirinho, Paulo Macambyra, Marcão Turcão (que não ia nem no Depois e nem no Armazém), Téo… me aceitavam no meio deles, em que pese a nossa diferença de idade seja de uma geração, dez anos ou mais. Eu na minha adolescência era o mascote, o Rim-Tim-Tim como gostavam de me gozar á época. E nesse meio, se não me engano em 1986, o Armando deu a idéia encampada pelo Simonetti e Nilo de criar um bloco de Carnaval. Me lembro de terem feito ata sobre essa fundação num caderno e várias pessoas, eu entre elas, assinar.

De lá pra cá, o bloco se transformou em sinônimo de resistência cultural e intelectual de Sorocaba e, principalmente, sinônimo de Carnaval. Todo ano, com ou sem Carnaval oficial na cidade, o bloco abre as festividades na Sexta-Feira de carnaval na avenida Eugênio Salerno, local onde ficava o Bar Depois. Em 2007 foi criada uma associação para cuidar do Depois a gente se Vira e desde então, ano a ano, alguém de um setor da sociedade é homenageado. Neste ano, foi a vez de Júlio Veredas, artista plástico. Na foto que ilustra essa postagem ele está com a cantora Márcia Mah e com a professora Tânia Bacelli, ambas já homenageadas.

Quando fiz o 2º grau na EE “Júlio Bierrembach Lima”, Tânia foi minha professora de História, ótima aliás. Depois ela foi vereadora pelo PT. Já Márcia é amiga da adolescência do que eu chamava, com muito orgulho, da Turma do Benão. Se não me engano, a irmão da Márcia é a atual dona do Depois hoje em dia.

Me dá muito orgulho fazer parte desta parte da história do carnaval sorocabano. Embora nunca tenha sido e ainda hoje não seja folião, tenho todo respeito pelo Carnaval e a chance que ele dá para as pessoas fugirem um pouco da realidade e mergulhar na fantasia, ou seja, no poder libertador de se entrar em contato com mundos imaginários, reprimidos ou projetados.

 

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