Coringa, Gaslighting e Black Bloc

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Coringa é um filme para adultos. Mais que isso, um filme para pessoas com maturidade intelectual para fazer o discernimento entre o “bem” e o “mal”. Do contrário, é capaz que se saia do cinema achando que o Coringa é o “bem”, pois todo o enredo leva o espectador a ter “pena” dele e de todos os milhões que ele representa. Coringa é mau na medida em que “faz justiça” pelas próprias mãos.

Dirigido por Todd Phillips, que co-escreveu o roteiro com Scott Silver, Coringa une a cultura pop, dos quadrinhos de Batman, à complexidade intelectual da psicanálise, da luta de classes do marxismo e da organização social tão investigada pelo vasto campo das Ciências Sociais.

No Brasil, Coringa está liberado para maiores do que 16 anos. Mas duvido que um adolescente tenha bagagem suficiente para detectar ou entender o que há além dos tiros, da raiva e do combate à soberba dos ricos. Ao contrário, o filme – correndo o risco de eu ser interpretado como arrogante – parece que no contexto brasileiro vai reforçar a tese dos Black Bloc (das manifestações de 2013) de que o ataque às instituições é o caminho para mudar as diferenças sociais. O que não é.

O que me toca, muito, em o Coringa é um tema que tratei aqui neste blog recentemente, quando do Dia das Crianças: um filho desejando a atenção dos seus genitores. Arthur (que a sucessão de fatos fará com que se torne o Coringa), ao descobrir-se filho do milionário Wayne, portanto irmão de Bruce que no futuro irá se tornar o Batman, é humilhado por um funcionário na porta da mansão quando tenta se aproximar do seu pai e, no banheiro de um teatro volta a ser humilhado e agredido fisicamente, desta vez pelo próprio sr. Wayne, quando pede reconhecimento e amor e o chama de pai. Ali, Arthur fica sabendo que sua mãe é “louca” e esteve no sanatório.

Sem citar explicitamente, como se espera e deseja, aliás, em uma obra de arte, Todd Phillips e Scott Silver, passam a tratar do conceito de Gaslighting (forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade).

Na época em que a história está contextualizada ainda não existe o exame de DNA. A mãe de Arthur, uma jovem linda, teve um romance com o poderoso Wayne enquanto trabalhava em sua mansão. Quando engravidou, passou a ser tratada como louca, com informações distorcidas, de modo que o sr. Wayne teve sua posição de poder e bom pai irretocável perante a sociedade. A pobre moça, porém, como louca. Em Sorocaba, há um ou outro caso assim que ficou conhecido. Mas quantos que ficaram desconhecidos? No Brasil, imagino, centenas. No mundo, milhares.

Coringa, no fundo, reforça o que a lei brasileira é clara em dizer, mas nem sempre é cumprida e vira e mexe a Justiça faz mutirão de DNA para tentar reparar: toda criança tem direito de saber quem é o seu pai.

Quando a Igreja Católica se posiciona contra o uso da camisinha, muitos interpretam como: a igreja é contra que se transe antes do casamento. Claro que isso também está na mensagem. Mas o que ela diz é: quando se casa, se assina um documento onde os dois, pai e mãe, assumem o compromisso de responsabilidade perante essa criança. Quando uma criança nasce sem esse documento, e um foge (no geral o pai), quem sofre é a criança e, por extensão, a sociedade – como mostra o filme Coringa.

Não é questão de moralismo, mas de responsabilidade. Uma criança precisa ser olhada, cuidada e protegida. Coringa é fruto do que a sociedade fez com Arthur. Evidentemente que essa não é uma matemática cartesiana, do contrário o mundo já havia sido dominado pelos coringas. Mas obviamente os coringas estão por ai, sofrendo, e quando podem, se socorrendo em especialistas, em remédios e terapias.

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