Falso mundo cor-de-rosa dos números oficiais e a realidade das ruas

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O advogado André Tolentino – que quando adolescente estudou na Escola Técnica Estadual Rubens de Faria, ao lado da Rodoviária, da Fadi e da USP – na hora do almoço desta quinta-feira usou sua página pessoal no Facebook para revelar uma observação sua a respeito de Sorocaba, a de que ele nunca viu tanto morador de rua, como agora, por aqui. Tolentino, prudente, ainda deixa em sua afirmação, uma pergunta: não sei se na sua cidade também é perceptível o aumento no número de moradores de rua.

Estar atento à cidade onde moro e ao que as pessoas pensam dela é um dos meus prazeres diários. Assim, na hidroginástica, no vestiário do clube, na aula de Pilates, na cantina da prefeitura, nas salas de espera… meus ouvidos estão sempre atentos ao que as pessoas falam. Ouço histórias pela metade, na maioria das vezes, e fico imaginando um final para elas. E faço isso não é de hoje. Uma alegria é fazer isso em conjunto com minha mulher que, igualmente, goza desse prazer.

Baudelaire, na Paris do século 19, deu um nome a isso: Flâneur, um substantivo francês que significa errante, vadio, caminhante ou observador.

Charles-Pierre Baudelaire foi um poeta boémio, dandy, flâneur e teórico da arte francesa. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido internacionalmente como o fundador da tradição moderna em poesia, juntamente com Walt Whitman, embora tenha se relacionado com diversas escolas artísticas.

Pensando nele, em Tolentino e sua observação, me deparei flanando pelo Face com essa jóia de texto que reproduzo a seguir do meu amigo, o escritor Márcio ABC. Autor de “Delação”, “Estado Bruto”, “Desrumo”, entre outros livros, conheci o ABC quando estava no Cruzeiro do Sul e ele veio a Sorocaba lançar o seu primeiro livro. Depois, ele foi editor-chefe do Bom Dia Bauru na mesma época em que eu fui da edição sorocabana do jornal. Ele é um dos amigos, daqueles que temos no coração, que se vêem pouco, mas se respeitam, admiram e desejam o bem um do outro.

Em “Sinal fechado”, uma pequena crônica sobre o momento do almoço de hoje de Márcio ABC, em São Paulo, onde ele reside e trabalha, entendo que está a resposta para a observação de Tolentino.

Em tempos de denúncias de manipulação dos números – feita pelo jornal inglês Financial Time – sobre o bom momento da economia brasileira “vendido” pelo superministro Paulo Guedes, do governo de mentalidade olavobolsonarista, nada como flanar e conferir com os próprios olhos o que vivemos.

O mundo cor-de-rosa de Paulo Guedes não alcança as ruas. Tolentino, bem observa isso em Sorocaba; Márcio ABC, em São Paulo; e imagino que isso esteja se replicando em cada cidade do nosso país. O mundo dos gráficos e números do governo ainda não se encontrou com quem pede dinheiro para completar a marmita, vende bala na esquina, espera por fregueses que nunca chegam para engraxar os sapatos, vendem guardanapos, distribuem folhetos ou, simplesmente, tomam uma pinga ruim que os derrubam em qualquer porta de banco e dormem iludidos de que aquele papelão é um bom colchão.

Se deliciem com Márcio ABC:

Sinal fechado

Por Márcio ABC

Na porta do quilão, a mulher quer ajuda para completar o valor da marmita. Dentro do café, o rapaz oferece os serviços de engraxate, mas não tenho tempo agora, então ele pede um dinheiro. Do lado de fora, uma mulher e uma criança aguardam para ouvir dele que não, ninguém quis engraxar. Na porta da lotérica, dois “sobrinhos” me mostram as balas que estão vendendo para comprar um salgado na lanchonete da esquina, exatamente onde o rapaz de quase todos os dias começa a esticar a mão em concha, virada, pelo amor de Deus, para todos os céus do mundo. Na quadra seguinte, sentada na calçada com uma criança no meio das pernas, a moça repete o mantra do trocado por piedade, pode ser uma moedinha só. Na outra rua, a mãe encostada ao muro mantém no colo a criancinha inquieta e os guardanapos que quer me vender, dois por cinco três por dez. Velhinhos distribuem folhetos nas esquinas. Homens de meia idade dizem “com todo respeito” e, sem dominar a humilhação, entregam-se à ingrata tarefa de esmolar. Vigiado pelo cachorro, o rapaz dorme entre os trapos ao lado do Santander. A mulher sem as duas pernas tem a solitária companhia da caixinha onde moedas escassas esparramam-se entre duas ou três notas de dois reais. À beira do trânsito, em frente ao Banco do Brasil, o homem de chapéu expõe umas frutas já meio passadas a dois e cinquenta. Por fim (deixei para o fim, mas poderia ser o início, também o meio), ali sob o sinal fechado, imagine só, a menina olha encantada, da janelinha do carro, para o músico: e em meio ao zumbido ininterrupto dos motores, uma voz macia canta Caetano.

(P.S. Escrevo aqui no meu celular, sentado no banco limpinho da praça decorada para o Natal, bucho cheio, roupa lavada, gelzinho no cabelo, cartão de crédito em dia, planos de cortar o doce da dieta diária).

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