“Imagina, não tem problema. Uma outra hora a gente conversa”. Assim me despedi de Rosângela Alves na última vez em que falei com ela. Pois é, não vai ter outra hora. A precoce morte da Pérola Negra de Sorocaba deixa uma lacuna na sociedade

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Rosangela

Estava à toa domingo à tarde quando chegou pelo whattsapp a informação de que Rosângela Alves havia acabado de morrer. Pensei num trágico acidente assim que li a informação. Em algo incontrolável, imprevisível e acidental como um avião que cai. Não foi nada disso. Não tinha idéia de que ela, tão jovem e cheia de vitalidade aos 53 anos, fazia tratamento de um problema do coração há 15 anos.

Tive durante um bom tempo (e ainda vai retornar) o programa O Deda Questão na TV. É uma extensão do que faço na rádio Ipanema e aqui no blog onde sempre convidava pessoas importantes em seu setor de atuação para debater idéias e provocar o telespectador a pensar a sociedade em que vivemos.

O ano de 2016 foi tomado desde o seu início pela toada da campanha eleitoral. Quase todos os programas giraram em torno disso e todos os pré-candidatos e depois candidatos ao menos uma vez sentaram comigo para debater que, ganhando a eleição, queriam fazer.

No ano anterior, por mais de uma vez, tentei levar Rosângela Alves para conversar comigo. Sempre havia algum empecilho. E eu sempre dizia, imagina, não tem problema. Uma outra hora a gente conversa. Pois era o que pensava. Tão jovem, tão linda e tão cheia de vida, nunca vai faltar oportunidade para conversar com a Rosângela. Mal sabia eu que não houve e jamais haverá outra chance dessa conversa.

Rosângela tinha uma liderança nata. E uma força rara no trabalho de resgate da autoestima negros com a difusão de seus valores e sua cultura.

Quando criança meu melhor amigo era negro, era melhor do que eu jogando bola, melhor do que eu na escola. Era admirado e foi levado para treinar no São Paulo. Pra mim ele era o Negão. Na escola era o Denilson José de Melo. Na vida de Sorocaba era o Petinha, irmão do Peta (seu irmão mais velho) e que deixou esse nome para seus irmão gêmeos, Douglas e Diógenes. O Negão também morreu. E mais cedo ainda. Tinha perto de 20 anos. Sofreu um aneurisma na rua São Bento. Nunca entendi um fim tão trágico.

Por esse amor tão natural que sempre tive pelo Negão, demorei para perceber a luta da Rosângela. Ela já tinha a Missão de dar vida ao Centro Cultural Quilombinho, Organização Não-Governamental que desde 2003 desenvolve um importante trabalho com crianças e adolescentes, de Sorocaba, numa parceria com Paulo Betti, quando eu a conheci ao assumir a secretaria da Cultura da prefeitura em 2005. Ela teve paciência para com consolidar valores como o de igualdade de oportunidades para todos, fraternidade entre diferentes, direitos equivalentes aos deveres assumidos, sentimento de cidadania independentemente de etnia, religião, posição social.

Rosângela Alves, uma negra de pele bem escura, era em sua vida o que são as pérolas negras: as mais raras pérolas encontradas na natureza, que nasce na ostra de nome Pinctada Margaritifera, popularmente conhecida como ostra-dos-lábios-negros, e são encontradas somente na imensidão da Polinésia Francesa, o atol de Manihi. Rosângela, a Pérola Negra de Sorocaba, deixa uma lacuna com sua morte. Mas, certamente, os frutos do seu trabalho, vão florescer e deixar viva a sua luta. Lamento não ter dado voz como deveria a Rosângela. Mas nunca podia imaginar que ela partiria tão cedo.

Rosângela foi velada ao som do Tributo a Martin Luther King; sepultada há instantes, ao som de Canção das Américas (puxado por Márcia Mah) e adorava reger a música “Canto das Três Raças”, de Clara Nunes, que tanto calava fundo em sua alma:

 

Ninguém ouviu

Um soluçar de dor

No canto do Brasil

 

Um lamento triste

Sempre ecoou

Desde que o índio guerreiro

Foi pro cativeiro

E de lá cantou

 

Negro entoou

Um canto de revolta pelos ares

No Quilombo dos Palmares

Onde se refugiou

Fora a luta dos Inconfidentes

Pela quebra das correntes

Nada adiantou

 

E de guerra em paz

De paz em guerra

Todo o povo dessa terra

Quando pode cantar

Canta de dor

 

E ecoa noite e dia

É ensurdecedor

Ai, mas que agonia

O canto do trabalhador

Esse canto que devia

Ser um canto de alegria

Soa apenas

Como um soluçar de dor

 

FOTO: Autor Edeson Souza do Grupo Imagem Sorocaba (http://edesonsouza.photoshelter.com/gallery-image/Rosangela-Alves/G0000CbzVeNppI2w/I0000ajEQ3t22E0E)

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