A morte de Zuleika Sucupira Kenworthy (24/11/1912 – 13/12/2017), em Sorocaba, na noite de quarta-feira, aos 105 anos e 19 dias de idade, é daquelas que dão esperança.
Para o brasileiro que tem a expectativa de viver 75 anos e 8 meses na média, saber que é possível ultrapassar a emblemática marca centenária, Zuleika é inspiradora.
Aliás, essa foi a marca de sua vida: inspirar.
Nunca a entrevistei e nem estive em sua presença ao longo da sua vida, nem nos últimos 28 anos em que ela viveu em Sorocaba, onde veio por razões familiares. Seu avô, imigrante inglês, foi pioneiro em trazer de Manchester, na Inglaterra, o conhecimento da indústria têxtil que mais tarde ficou conhecido Cianê (Companhia Nacional de Estamparia).
Sua história toca na história de cada família sorocabana. Sua morte é um instante para cada um olhar aos pais, avós e saber como chegou aonde está.
Se não nasceu aqui, como Zuleika chegou a Sorocaba?
“Tudo começou na Inglaterra do século 19. Com a saúde abalada pelo clima frio, meu avô (John Kenworthy) decide vir ao Brasil com um amigo. Desembarcaram no Rio e deram de cara com uma epidemia de febre amarela. O amigo tratou de voltar à Inglaterra, mas meu avô disse: gostei, vou ficar. Após montar fábricas de tecidos para outros empresários em Tatuí e em Jundiaí (cidade onde Zuleika nasceu), ele decidiu construir a sua, em Sorocaba. É a fábrica Santo Antônio. Ele fez tudo, desde o alicerce”. Essa mesma fábrica que hoje abriga o Pátio Cianê Shopping, que fica à direita para quem vem da zona norte pela rua Comendador Oeterer, passa por cima do Viaduto dos Ferroviários e vê ao lado direito a ampla parede de tijolinho aparente, arquitetura como a do avô de Zuleika, em Manchester.
Conquista do sonho
Ela preferiu enfrentar o preconceito, escreve o jornalista José Maria Tomazella, que de Sorocaba produz vasto material jornalístico para o jornal O Estado de S.Paulo: “Promotor era profissão de homens, mas era o meu sonho”, disse Zuleika para Tomazella.
Zuleika prestou concurso três vezes. Tinha saído formada da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco com boas médias, “mas não era uma super aluna”, diz. Na primeira tentativa, fez uma prova tão boa que um dos examinadores ficou desconcertado. “Ele não esperava aquele desempenho de uma mulher”. Não entrou. No segundo concurso, com 12 vagas, ficou em 13º lugar. “Diziam para desistir, pois não era lugar para mulher. Mas eu disse vou conseguir, nem que seja com 60 anos”.
No terceiro, foi perfeita. “Quando vi meu nome na lista, quase explodi de alegria”. Depois de aprovada, ainda teve de ouvir de um procurador que, se ele estivesse na banca examinadora, ela não teria passado. “Respondi: o senhor ainda vai ver como uma mulher pode ser um bom promotor. Era João Batista de Arruda Sampaio, que depois se tornou um grande amigo”.
É ou não uma mulher inspiradora, a Zuleika?
De olhos miúdos e esverdeados, muito vivos, que brilhavam com as lembranças dos 32 anos de promotoria, como relata Tomazella em outro trecho do perfil que fez com ela, Zuleika ao viver a busca pelo seu sonho, ao perseverar sem nunca desistir, e enfrentando as dificuldades e os preconceitos ainda hoje, e, pleno século 21, é um exemplo a ser enaltecido e uma história a ser preservada.
Ativista da igualdade feminina
O que leio sobre Zuleika, para homenageá-la com este texto, são registros do seu pioneirismo ao se tornar foi a primeira mulher a ingressar no Ministério Público, numa época em que a carreira era exclusivamente masculina. Pioneira em São Paulo, no Brasil e na América Latina, foi também a primeira procuradora a atuar no Estado em São Paulo.
Mas o enfrentamento dela a torna uma das mais importantes ativistas brasileiras da busca da igualdade feminina. “Ela nasceu rica, tornou-se bonita e culta, falava várias línguas. Ao invés de viajar pelo mundo, como lhe sugeriam, preferiu enfrentar o preconceito”, explica Tomazella em outra passagem do perfil que fez de Zuleika quando ela estava com 97 anos.
Até os anos 50, a família brasileira era regida por um ideal hierárquico, em que a superioridade masculina era legitimada tanto pelo domínio que o homem exerce na esfera pública, quanto pela desobrigatoriedade com relação à monogamia. É neste cenário, real e absolutamente diferente dos dias atuais, que Zuleika lutava por seu sonho.
À sombra da figura onipotente do homem, onde a mulher não passava de uma subordinada que devia atender aos caprichos do marido, Zuleika fez a opção de seguir na sua liberdade, sem ser submissa, deixando de lado o que era o sonho das meninas da sua época, o casamento. Por isso nunca teve filhos.
Observadora da história da humanidade, onde prevaleceu os três modelos femininos: Eva (a pecadora), Maria (o modelo de perfeição e santidade) e Maria Madalena (a pecadora arrependida), Zuleika tratou de colocar sua sabedoria a favor da família e, em particular, do lado mais fraco de toda essa relação que são os filhos em especial enquanto são crianças.
Em 1954, passou a ser curadora de menores em São Paulo onde atendia mais de 20 crianças por dia, envolvidas em todo tipo de problema. Seu trabalho foi reconhecido em 1963, quando representou o Brasil no encontro sul-americano sobre criminologia e prevenção da delinquência promovido pela Organização das Nações Unidas. Dois anos depois foi convidada para o congresso da ONU sobre o tema da delinquência infantil e juvenil em Estocolmo, Suécia. Nesse evento, onde ela informa ao jornalista Tomazella ter pagado a passagem, na última sessão, escolhida para fazer o relatório final, surpreendeu os presentes discursando em francês.
Homenagens e honrarias
Zuleika se aposentou aos 66 anos em 1978, três anos após ser promovida a procuradora da Justiça, dedicou-se à música (como regente de corais) e ao magistério.
Entre as honrarias que recebeu em vida estão o Colar do Mérito Judiciário, o Colar do Mérito Institucional do Ministério Público paulista e o Título de Cidadã Sorocabana.
O prefeito Crespo, e a vice-prefeita Jaqueline Coutinho, via assessoria de imprensa, divulgaram nota lamentando a morte dela: “Zuleika Sucupira Kenworthy sempre foi um exemplo de mulher forte. As conquistas que acumulou ao longo da vida são uma demonstração disso. A sua perda vai deixar uma lacuna muito grande para todos nós, sorocabanos, que aprendemos a admirá-la. Resta-nos como cristãos pedir a Deus que cuide bem dela”, declarou Crespo. “É com muito pesar que recebemos a notícia do falecimento, aos 105 anos de idade, da senhora Zuleika Sucupira Kenworthy. Pioneira e corajosa, foi a primeira mulher a ingressar por concurso público na carreira de promotora de Justiça não só no Brasil, mas em toda a América Latina. Foram 32 anos de promotoria, além também de ser a primeira procuradora de Justiça do Estado. Sem dúvida foi uma mulher que sempre esteve à frente de seu tempo. Distinguiu-se por sua combatividade e destemor. E, ao que tenho conhecimento, sempre foi uma mulher dinâmica e devotou-se integralmente a fazer justiça. Sorocaba e o Brasil perdem hoje uma das mais importantes personalidades, exemplo de cidadania e perseverança não só às mulheres, mas a toda sociedade”, afirmou a vice-prefeita.
Testemunha da história
Zuleika nasceu no dia 24 de novembro de 1912, tinha apenas 7 meses quando o Titanic afundou nas águas geladas do Atlântico Norte na madrugada de 15 de abril daquele ano, deixando um saldo trágico de mais de 1.500 mortos.
Ainda em 1912, quando nasceu, teve início a Guerra do Contestado, um conflito armado entre a população cabocla e os representantes do poder estadual e federal brasileiro travado entre outubro de 1912 a agosto de 1916, numa região rica em erva-mate e madeira, disputada pelos estados brasileiros do Paraná e de Santa Catarina.
No mesmo ano, a República da China (que hoje é potência mundial e apenas neste ano mandou 7 comitivas para visitar Sorocaba) dá fim a 2000 anos de domínio Imperial e 268 anos da Dinastia Qing.
Ainda em 2012, nascem os escritores Jorge Amado e Nelson Rodrigues.
Zuleika, para se ter a dimensão do que viveu, nasceu antes da chamada Primeira Guerra Mundial (também conhecida como Grande Guerra ou Guerra das Guerras até o início da Segunda Guerra Mundial) foi uma guerra global centrada na Europa, que começou em 28 de julho de 1914 e durou até 11 de novembro de 1918. Aos 27 anos de idade, viu a Segunda Guerra Mundial foi um conflito militar global que durou de 1939 a 1945, envolvendo a maioria das nações do mundo organizadas em duas alianças militares opostas: os Aliados e o Eixo. Foi a guerra mais abrangente da história.
Ela nasceu, viveu e morreu na mais fenomenal evolução dos meios de comunicação. Em 1912 o papel e o lápis eram luxo, hoje o celular é mais do que um computador, mas um disseminador de conteúdo e informações em avalanche de bites.
Ela viu o homem morrer de gripe até a realização do primeiro transplante do mundo, em 193 feito por cirurgião ucraniano em um homem para tratar uma insuficiência renal, até o que a medicina oferece hoje na cura de diferentes tipos de câncer. Viu o Homem pisar na Lua. Viu a descoberta da dimensão do Cosmo.
Na juventude, morando com a família no bairro Aclimação, em São Paulo, Zuleika se apresentou como voluntária para combater as tropas de Getúlio Vargas, na Revolução Constitucionalista de 32.
Viu, viveu e inspirou a história!
Obrigado Zuleika, seu exemplo vai seguir vivo.
Que se abra aos estudantes
Me atrevo a deixar uma sugestão para Elza Mônica de Oliveira Bitencourt, sua sobrinha, que cuidou dela até seu minuto final: Mônica, abra a casa da Zuleika para a visitação.
Há meios de se organizar a entrada de jovens, principalmente estudantes, para conhecer a sala com móveis franceses que acompanham a família há 100 anos, expondo os quadros de artistas famosos que dividem a parede com retratos e diplomas, como um assinado pelo imperador Pedro II, entregue pessoalmente a Carolino Bolivar d’Araripe Sucupira, avô materno da promotora, que o diploma depois de lutar na batalha do Avaí, na guerra do Paraguai – seguramente um dos episódios mais marcantes da história da América do Sul.
O local onde viveu mulher tão inspiradora, certamente a casa de estilo inglês, que fica imersa num jardim que faz fundos com a casa da sobrinha, vai inspirar.
Dê essa chance aos jovens, Mônica!
FOTO: De autoria do sorocabano Epitácio Pessoa, essa foto de Zuleika foi feita para ser publicada originalmente no jornal O Estado de S.Paulo.