O acaso fez com que eu presenciasse uma das cenas mais assustadoras do meu dia na hora do almoço de hoje.
Saí do Paço Municipal para um compromisso particular e resolvi parar para comer uma caçarola italiana e tomar um expresso na Real da frente da prefeitura. Quando saí, na Faixa Viva de pedestres duas pessoas sinalizam com o braço que desejavam passar. Parei e liguei o pisca alerta na faixa da esquerda, do lado de onde os pedestres vinham. Não havia nenhum outro carro nesta cena. Nem ao meu lado, a faixa da direita, e nem mesmo atrás de mim.
De repente, em segundos, quando os pedestres estavam na metade da Faixa Viva surge um Audi branco, o que ilustra essa publicação. O pedestre levanta os dois braços e diante do evidente perigo parou e a mulher também. Os dois no meio da Faixa Viva e o Audi passou seguramente numa velocidade acima dos 100km/h. A marcha esticada fez o motor roncar mais alto.
Os pedestres chegaram são e salvos do outro lado da avenida e segui meu caminho no ritmo da pista. E me encontrei com o tal Audi branco parado no semáforo do acesso ao Fórum de Justiça. Daí ter sido possível fotografá-lo.
Essa é a chamada não-notícia, uma vez que o fato não se confirmou. Assustado com a cena, fiquei com a sensação de que o motorista do Audi não tinha a intenção de atropelar os pedestres e que acelerou por ter percebido que dava tempo dele passar, como de fato deu.
Relógio, sapato, roupas e acessórios, perfume, corte de cabelo, mas sem dúvida alguma os automóveis despertam o instinto de força e sedução primitivo do ser humano do gênero masculino. Um instinto que, como uma cebola, vai sendo domado no processo em que as relações sociais vão ficando mais complexas. E, como instinto, uma hora ela escapa dessa racionalidade e se impõe. E o trânsito, me parece, tem sido um campo largo para que tais movimentos aconteçam.
A potência do carro, como extensão do corpo, desperta esse instinto animal da virilidade (intencionalmente, a unidade de medida do motor de um carro é “cavalo de força”). A potência do carro, inconscientemente, leva a um processo de identificação masculina. Lembrando que “onde há identificação, há projeção da própria personalidade”, ensina a Psicologia.
O trânsito, assim, é esse campo onde o ser do gênero masculino projeta a sua personalidade de modo inconsciente. Isso é tão verdadeiro que os seguros dos automóveis são oferecidos com desconto, custam menos, quando o proprietário do veículo é do gênero feminino, uma vez que a mulher se comporta de modo “normal” no trânsito, quando dirige, quando vê uma Faixa Viva.
Nessa relação carro e a via por onde ele passa, conscientemente esse motorista masculino “vende” a personalidade que deseja aparentar. O raciocínio, simploriamente falando, é assim: Compro um carro potente, logo quem me vê me verá como potente. Não importa mais o que sou ou que tenho (“Ser ou não ser, eis questão!” é um paradigma shakespeariano cada vez mais defasado no século 21), mas o que eu pareço ser. A aparência e o que ela faz no outro ao projetar em mim o que eu desejo ser é, no fundo, o que importa. Quem não conhece uma pessoa que tem um carro de mais de R$ 150 mil e mora numa casa modesta, digamos assim!
Daí, me pergunto: o que esse motorista de hoje na hora do almoço pensa que vão pensar dele por ter acelerado o carro, fazendo o motor do seu Audi roncar alto, quando ele viu duas pessoas sobre a Faixa Viva de pedestres e ainda assim avançar?
E eu mesmo me respondo: Que é um completo de um imbecil.
Mas, evidentemente, esse motorista pouco se importa com o que pessoas como eu, ou as que estavam sobre a Faixa Viva, pensam dele.
O motorista de hoje (e seus milhares de similares) se importa, somente, com o que as pessoas do seu círculo, e que não passam sobre a Faixa Viva, certamente, pensam sobre o que ele emana. São pessoas que se desconectaram das pessoas, que se subdividem em classes, categorias, totalmente deslocadas do sentido do humano de ser. É como estar vivendo numa espécie de Distopia – representação ou descrição organização social cujo valor representa a antítese da utopia – como fica claro em obras como os episódios do seriado “Black Mirror” (Netflix), do livro “1984”, de George Orwell, ou filme “Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick e Anthony Burgess.