Nonno, nonno, nonno… vamos brincar?

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Claro que tirei várias férias na vida, afinal tenho quase 53 anos de idade e meu primeiro emprego (o que significa receber por um esforço feito para o outro) ter sido aos 7 anos. Primeiro recolhendo lenha para a Barbarina, a mãe da Loura, casado com um senhor enorme que dirigia uma camionete Toyota Bandeirante. Ela insistia em cozinhar em fogão à lenha. Todos na Vila Santana já tinham fogão à gás em 1974, mas a Barbarina sabia que a comida à lenha tinha sabores impossíveis de serem alcançados no fogão à gás. Depois ganhei dinheiro carregando latas e mais latas cheia de areia para seo Ito (Hilton) e a dona Dirce, pais do Rinaldo, um dos primeiros da rua Moreira Cabral a fazer do telhado da casa um terraço, um luxo, ainda hoje, de liberdade e privacidade. Fui engraxate também. E tomei um chapéu de um homem que pediu para eu engraxar a bota dele, de cano alto. Um duro danado para dar cor e brilho e consumia muita graxa. Impiedoso, ele não me pagou. Anos depois, quando me tornei professor no colégio Uirapuru, vi esse homem trabalhando lá como inspetor de alunos. Tive o ímpeto de dizer a ele o quanto a sua péssima atitude havia marcado minha vida. Mas não o fiz. Nada apagaria a dor do passado. Uma dor que havia ficado lá atrás. Fui entregador de propaganda eleitoral para o vereador Marinho Marte, em 1982, quando ele ganhou pela primeira vez. Um homem chamado Humberto me contratou no Zé da Batida e me deu cano, de 1mil Cruzeiro. Fui garçom no Depois em Sorocaba, no Natural em Campinas. Fui metalúrgico na BSI, onde entrei pelo Senai e conheci o Bolinha do Sindicato, que no seu velório recebeu a presença de Lula, o então presidente da República. Fui radialista da Metropolitana no Santa Rosália Street, na rádio Princesa do Oeste em Campinas até que o Cláudio Oliveira me contratou depois que descobri o Didi, ganhador da Loto (atual Megasena) e tive a Carteira assinada como jornalista profissional. Poderia estar aposentando ou me aposentando, mas lapsos na contribuição para o INSS provavelmente me impedirão de um dia me aposentar. Com isso tudo, como disse, obviamente que tive várias férias.

Já viajei de carona até Ilhéus, na Bahia, na terra do cacau, onde Jorge Amado se inspirou para escrever Gabriela. Já viajei de primeira classe de Buenos Aires, tomando vinho em copo de vidro e comendo carne com garfo e faca de prata. Já fui à Coreia do Sul. Já senti saudades da Real quando tomava café em Madrid. Já passei fome em Bodoquena onde dividi um tomate e lata de ervilha. Já passei frio num trem de Miranda para Campo Grande. Já viajei no trem da morte de Bauru a Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Já morei em Deen Haag, na Holanda. Já passei tardes incríveis nas livrarias e salas de cinema de São Paulo. Nadei nu em uma praia de Florianópolis e boiei na praia do francês em Maceió. Tomei uísque com a pedra de gelo que eu extrai com um martelo numa geleira da Patagonia. Já perdi a hora no quarto de hotel em Santiago, no Chile, dormindo quase 15 horas seguidas. Já dancei num balcão de bar em Cartagena, na Colômbia, depois de ter batido na porta da casa de Gabriel García Márquez e ser atendido por ele. Fiz amizade com homens e mulheres em todo canto. Bebi e comi maravilhas divinas, como um doce de creme na Ponte Neuf, em Paris, bacalhau em Sintra, Portugal. Fui no sítio da minha tia Zizinha, em Cerquilho, onde remei um bote sozinho no lago e me senti como a personagem de A Ilha Perdida de Maria José Drupat. Lá comi minha primeira laranja colhida do pé e me senti personagem de Meu de Pé de Laranja Lima de José Mauro Vasconcelos. Plantei minha primeira árvore em Anyang, na Coreia. Fiquei bêbado na rua da primeira sinagoga do Brasil, na região do antigo porto do Recife, cidade onde conheci Brennand e seu gigantesco ateliê. Subi nas pirâmides do antigo império Inca na Guatemala. Andei pelas ruas subterrâneas de Toronto no Canadá. Joguei tênis no Country Club de Araraquara. Vi Ronaldo, o Fenômeno, marcar os 3 gols do Barcelona naquela vitória contra o Valencia. Não paguei o táxi em La Coruña porque me chamo Djalma e Djalminha era o craque do time e o motorista era grato pelo que ele fazia em campo. Joguei no campo de treino do Palmeiras treinado pelo César Maluco contra o time do Ademir da Guia. Já dirigi uma Belina, caindo aos pedaços, de Campinas a Sorocaba, trazendo um domingo de manhã Paulo Betti e Eliane Giardini, depois que ambos contracenaram adaptação de Gata em Teto de Zinco Quente, durante 3horas na madrugada do sábado, num túnel de pedestre, todo revestido de azulejos brancos, na antiga Estação de trem de Campinas. Já estive em Finesterre, junto de um grupo de intelectuais, que participava de uma conferência, cujo o principal palestrante era Umberto Eco com quem dividi o mictório ao mesmo tempo, ambos fazendo xixi. A Finisterre é o local que por muito tempo se achava que era o fim da Terra, o fim do mundo, até que Colombo descobriu a América. Já almocei com Caetano Veloso em seu camarim num show dele em Campinas, tomei café da manhã com Otto num hotel de Salvador. Já dividi um cigarro com Paulo Leminski em Barão Geraldo. Viajei para Brasília sentado na poltrona ao lado da Ana Paula Padrão e vi ela durante toda a viagem tirando a cutícula com um alicatinho. Já vi uma canja de Miles Davis, em um bar de Lisboa. Assisti concerto da Camerata de Concertbow em Amsterdã. Dormi embaixo do palco onde cantava Raul Seixas e acordei ouvindo João Gilberto em Iacanga, Águas Claras, em 1983. Vi Paulo Autran como Otelo, de Shakespeare. Assisti o parto da minha filha mais velha (E quase desmaiei)…

Nada disso, confesso, se compara com as duas últimas semanas que passei em casa, de licença médica, devido a uma síndrome gripal aguda. Não fosse o Covid19 e teria enfrentado minha gripezinha trabalhando, como sempre o fiz. É chegar abril e me encrenco. Assim também era minha mãe. Tosse seca, um pouco de falta de ar. Cansaço. Mas nesse ano, devido à pandemia de CoronaVirus, o médico decidiu me deixar em casa, afinal tomo remédio para pressão, glicemia e coração. E foram as duas melhores semanas de minha vida. Tive certeza disso hoje, quando voltei a trabalhar. As horas demoraram uma infinidade para passar. Sentia desperdício precioso do tempo que podia estar com a minha neta. Foram dias memoráveis e inesquecíveis. No fogão, lendo as histórias de Emília de Monteiro Lobato, desenhando, brincando de casinha, vendo e revendo e decorando A Macha e o Urso. Levando ela para andar de bicicleta… e quando eu “desmaiava” no sofá, de tão cansado, ela vinha de longe, gritando, como um trovão, com a sirene ligada: Nonno, nonno, nonno… vamos brincar? E minha filha caçula berrava, de longe: H… deixa o nonno um pouco em paz! A paz é a existência dela. A paz de que tenho uma ótima vida.

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