“(…) Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente/ A esperança dança na corda bamba de sombrinha/ E em cada passo dessa linha pode se machucar/ Ah, a esperança equilibrista/ Sabe que o show de todo artista tem que continuar (…)”
No dia da morte do autor de um versos desses, o mundo deveria parar em sua homenagem. Mas nada aconteceu. Num país de gente que pára horas na frente da TV, em tempos de pandemia, para assistir uma baiana rebolando de pijama num axé; uma dupla de paulistas cantando sertanojo; um “mauricinho” fazendo show de luzes na sua pick-up… é imbecilidade minha imaginar outra coisa.
Aldir Blanc se foi de Covid19 muito antes da sua hora, aos 73 anos.
E Flávio Migliaccio, encontrado morto nesta segunda-feira, aos 85 anos, supostamente se matou por desgosto. A polícia investiga se uma carta encontrada ao seu lado foi, de fato, deixada por ele. Apenas a perícia vai confirmar sua autoria.
São sentimentos diferentes que tive por essas mortes.
Pulsa em mim uma revolta pela partida de Blanc. Sinto uma certa raiva. É absurdo que alguém com a vida pela frente seja vítima de uma realidade tão cruel como a que vivemos.
Por outro lado, a morte de Flávio Migliaccio me deixou melancólico. Nunca o vi no teatro e como eu nunca vejo TV, onde ele aparecia sempre, assim praticamente me desencontrei dele há 45 anos, em 1974, quando eu tinha apenas 7 anos de idade. Mesmo assim, ele vivia fortemente em mim, vivia através de Xerife, seu personagem no seriado “Shazan, Xerife e cia.” onde Paulo José fazia o Shazan.
O programa ficou no ar entre 1972 (eu tinha 5 anos) e 1974 (quando eu completei 7 anos) e demorei para compreender que eles eram mecânicos. Achava que eles eram inventores e amava a “camicleta” (espécie de jeep misturado com bicicleta). Eu torcia para o Xerife fazer a coisa certa, mas ele sempre errava e o Shazan ficava bravo. Era como o Tom e Jerry ou Gordo e Magro. Talvez tenha nascido com Xerife minha predileção pelos mais “fracos”, pelos que apanham, pelos que tentam fazer “o certo”, mas acabam fazendo “o errado”.
A carta, ainda supostamente atribuída a Flávio Migliaccio, diz: “Me desculpem, mas não deu mais. A velhice neste país é caos como tudo aqui. A humanidade não deu certo. Eu tive a impressão que foram 85 anos jogados fora…num país com este. E com esse tipo de gente que acabei encontrando. Cuidem das crianças de hoje. Flávio.”
Não discordo de nada do que está escrito nela. Especialmente da parte que diz para a gente cuidar das crianças. Mas, pergunto: que cuidado estamos tendo com elas quando autores como Aldir Blanc ficaram em segundo, terceiro, quarto plano e a TV massifica versos de Bruno e Marrone; Guilherme e Benutto; Mano Wlater; Joelma, Thiaguinho, Ludmila, Simone e Simaria…
Como escreveu Aldir Blanc: “(…)O Brazil não conhece o Brasil/ O Brasil nunca foi ao Brazil(…)”.
Xerife morreu. “…O Brasil nunca foi ao Brazil…”
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