Quando eu tinha algo entre 8 e 11 anos de idade, num dia de Natal a minha irmã mais velha me levou na casa da tia do meu cunhado que, eu acho, já era o marido dela ou estava para ser. Eu não era esperado na casa e havia um presente para cada convidado na árvore da sala, menos pra mim. Mas, Natal, criança, árvore e sem presente pra mim… e toca a Verinha, me lembro do nome e cara dela, que era prima, filha da tia do meu cunhado, me arrumar um presente. E ganhei um vidrinho de perfume. Me lembro que foi o máximo aquilo. Tinha um cheiro de madeira, almíscar, enfim um cheiro que passou a ser meu. Desde então, passei a usar perfume de algum tipo.
Atualmente uso um que gosto muito, chamado Essencial, com aroma da Copaíba.
Pensei nisso tudo ao receber um convite para eu boicotar a Natura. Há uma onda de indignação em torno da campanha publicitária para o Dia dos Pais da empresa de perfume que colocou Tammy como o representante do pai presente. Aquele que faz parte do cotidiano do filho. Tammy é um homem trans, nasceu com a genitália feminina, viveu boa parte da sua vida nessa condição e não se reconhecendo mulher se tornou o que ele sentia ser, homem. Me enviam de tudo e gente que eu não conheço e não me conhece. Só isso explica um convite para algo tão absurdo, boicotar um pai devido sua identidade de gênero.
Tammy é motivo de orgulho por vencer num mundo tão ignorante e cruel.
Eu, certamente, faria parte daqueles que boicotam uma empresa que, por ventura, venha apoiar o pai tradicional, desses que são masculino OU feminino, mas somem, ou se recusam a aceitar a sua condição. Me choca saber o número de crianças no Brasil de hoje que não têm o nome do pai em sua Certidão de Nascimento: 5,5 milhões.
Por que essas pessoas não se incomodam com essa ausência, mas se incomodam com o fato de Temmy ter nascido com a genitália que não corresponde ao que ele se sente?
É cultural a explicação. As pessoas foram educadas para um modelo e sentem dificuldade em aceitar o que foge do que elas aprenderam. Eu vivi uma experiência assim.
Quando eu tinha 13 anos, fui selecionado para trabalhar na Loja Moreno Materiais de Construção que tinha na avenida Dom Aguirre no mesmo local onde hoje está a Kalunga. Eu ia a pé de casa, na Vila Santana, até lá. E meu caminho era pela alameda Kenworth, no bairro de Santa Rosália. Um dia, vi uma menina linda saindo de uma casa e indo para a escola. Eu odiava o emprego de vendedor de pregos e parafusos na Moreno, mas me animava sair da cama para ver aquela menina todos os dias. Ela saia do portão da casa dela e entrava no carro do pai, da mãe, que estava parado bem na frente. Aquela menina me olhava e eu olhava para ela. Havia ternura e cumplicidade entre nós. Até que um dia, me enchi de coragem e perguntei o seu nome. Se chamava Marco… Não era uma menina. Tinha traços femininos, cabelos compridos como de uma menina para ano de 1979, falava como uma menina. Mas era um menino. Aquilo foi um choque para mim. Fui me confessar com o frei Atílio na Igreja Santa Rita, afinal cometi um pecado sem tamanho ao me interessar por uma pessoa que eu achava que era menina, mas era menino. E passei a desviar o meu caminho. Passei a ir ao trabalho pela avenida Pereira da Silva. Me remoía de dor aquele pecado. Vendo aquela situação com o meu olhar de hoje, estou certo de que se houve pecado foi o meu preconceito. Sou incapaz de dimensionar a dor que provoquei naquela pessoa. Eu simplesmente anulei ela da minha vida, mudando de rua.
Em pleno século 21, a proposta de boicote a uma empresa que contrata uma pessoa trans é descabida. Mas nos mostra que há um longo caminho para que o preconceito seja eliminado.
O fato é que continuarei usando perfume Natura. E externo meu respeito às pessoas que associam a paternidade e maternidade aos atos de cuidado e amor, independentemente da sua identidade de gênero. Família é o ambiente de quem busca ser feliz e saudável, influenciando positivamente a vida dos filhos e netos.