Por que nos acostumamos com isso?

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Fui um adolescente sem dúvidas sobre a profissão que iria exercer. Nunca precisei fazer Teste Vocacional. Nunca fiquei em dúvida entre duas ou três faculdades. Apesar de sempre ir bem melhor em Matemática do que em Língua Portuguesa, de ter feito Mecânica Geral no Senai, de ter um futuro encaminhado na fábrica BSI, eu segui o meu caminho sem drama algum. Sem dúvida do que queria.

Entrei muito cedo na faculdade, aos 17 anos, com o sonho de ser repórter esportivo, ou melhor, de futebol. Mas, menos de seis meses depois, eu já sabia que minha missão era “mudar o mundo” e então passei a me dedicar a isso com mais afinco. Essa missão se tornou meu foco. Eu era um estudante aplicado. Sempre li muito sobre minha profissão, fui fazer mestrado e especializações, para entender um relato qualquer no seu contexto completo, ou seja, o momento da publicação, sua relação com o passado da humanidade e como documento para as gerações futuras.

Depois de estar dentro da engrenagem do jornalismo, a minha primeira matéria assinada foi sobre uma menina, de uns 6 anos, que catava coisas num lixão junto dos seus pais. Me lembro de tê-la pegado no colo. Me lembro da minha impotência diante daquela situação. Saí de lá, cheguei na redação e tive a certeza: pronto, agora todo mundo vai saber da desgraça de vida que essa criança, seus pais e irmãos levam. Estou anunciando o problema e, assim, o mundo daquela criança mudaria.

No dia seguinte, a página com a matéria sobre aquela desgraça vivida por aquela criança estava forrando o fundo de alguma gaiola. E o mundo continuou igual. Não serviu para nada minha matéria. Não serviram para nada os relatos que estou fazendo há 40 anos. Não vai servir para nada o de hoje…

Há um abismo social no Brasil que, quando decidi “mudar o mundo” em 1985 eu acreditava que levariam 50 anos para pôr fim a ele. Hoje, sou incapaz de arriscar um palpite para qualquer data que isso terá fim. Ao contrário, acho que será assim para sempre. Nós todos nos acostumamos com crianças catando lixo, vendendo pipoca no semáforo, enfim, sem infância. Por quê? A resposta certa, seja ela qual for, necessariamente precisa passar por um sentimento raro hoje em dia, o de empatia.

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