Quando sobrevivem apenas os que baixam a cabeça

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Entre todos os relatos que leio sobre a invasão da Rússia ao território da Ucrânia, um, particularmente, me chama a atenção: sobre o clima, o ambiente em Kiev, capital ucraniana. O que se vê é a suspeição entre os ucranianos, ou seja, há uma desconfiança generalizada e atmosfera de “caça às bruxas”. Em nome de eliminar possíveis infiltrados pelo governo de Vladimir Putin no país, a Ucrânia não alivia para o cidadão comum.

Na prática isso significa que um cidadão qualquer pode ser denunciado pelo seu vizinho e, pronto, está transformando em inimigo do Estado. Me lembro de ter publicado aqui situação muito similar vivida no Rio de Janeiro durante os anos de chumbo relatada por Hildegard Angel. Ela disse: “A qualquer denúncia anônima, agentes do Dops invadiam residências, vasculhavam tudo, e bastava encontrarem um livro de economia de Celso Furtado para a família inteira ser presa como agitadora. E as consequências, imprevisíveis. Não se sabe se sairiam vivos. Quem duvidar que duvide, mas era assim. (…) Todos tinham medo de todos. (…) Este era o Brasil. Sobreviviam os que baixassem a cabeça, não vissem, não escutassem, não comentassem, num perpétuo ‘jogo do contente’ (…) ‘Dedurava-se’, delatava-se, caluniava-se a três por dois, qualquer desafeto que atravessasse o caminho. O marido ciumento entregava como ‘subversivo’ o vizinho, de quem desconfiava estar cortejando sua mulher. Sei de um caso em que o vizinho foi levado para averiguação e nunca retornou. Este era o cotidiano brasileiro. (…) Ser covarde era um mérito.”

Tudo isso, novamente, me traz à postagem que escrevi há dois dias quando disse que a ideologia dominante, que eclodiu em 2013, é a de disseminar desconfiança.

Enviei para um amigo a fala do presidente no ato da cerimônia do Dia da Mulher, onde ele afirma (sic): “Hoje em dia, as mulheres estão praticamente integradas à sociedade”. Junto, o comentário de um amigo virtual, o Rodrigo Guedes Coelho: “1- Praticamente? 2- Integradas à sociedade? Dá a impressão de que o sujeito está falando de um animal selvagem que saiu da jaula e hoje pode andar por aí quase como se fosse um ser humano… Bizarro.”

Eu disse, as mulheres e a inflação vão derrotar seu candidato e ele retrucou deixando evidente sua desconfiança: você é muito cirúrgico com o capitão. Traduzindo: você persegue o presidente e se você o persegue, eu desconfio de você. Ou seja, não importa a realidade. E sem uma base comum (real) fica difícil o entendimento, a confiança, a harmonia.

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