Não olhe, não olhe, não olhe…
O tom da voz foi crescendo em energia na mesma proporção que suas palavras saiam de seus dentes cerrados e lábios quase fechados…
Era uma amiga, casa dos 50 anos, saia comprida, meia calça grossa, dizendo a outra o que fazer diante da cena que desfilava diante delas, que estavam sentadas no banquinho com seus pastéis sobre a mesinha plástica na banca da Vila Jardine, ontem, domingo, já perto da hora do almoço.
Na frente delas, descia a rua um homem na casa dos 30 anos, alto, arrisco a dizer que tinha 1,90 metro ou mais, forte, sarado de academia, olhos azuis. Um pouco mais atrás sua mulher, olhos de jaboticaba, beirando a mesma idade, também em ótima forma física. Junto deles, dois filhos, imagino que um tenha 8 e outro 10 anos. Os quatro passariam despercebidos, como tantos outros casais com filhos passam, não tivessem os quatro drédis no cabelo, uma espécie de penteado. Segundo o dicionário: Dreadlock ou lock-dread, rasta ou simplesmente dread, é um penteado na forma de mechas emaranhadas, ou uma forma de se manter os cabelos.
O pai, loiro escuro, o filho mais velho loiro claro, a mãe e o mais novo, morenos.
A vendedora de pastel disse: Imagine se pegam piolho! A freguesa respondeu: Deve feder, não dá pra lavar.
A mulher que pedia pra amiga não olhar, como se ambas estivessem vendo assombração, disse que já imaginava em quem eles votariam.
Um homem, beirando os 55 ou 60 anos, falou: Me lembra a Família Urso do Cabelo Duro. E o moço que frita pastel disse que não sabia quem era. Eu expliquei que era um desenho Hanna-Barbera que passava na TV, mas que o casal não me lembrava o desenho. Ele replicou: O bom da feira é que a gente vê de tudo e todo tipo de gente. Eu falei, com entusiasmo, ainda bem. Ele respondeu: Acho que é algum tipo de religião.
Talvez ele tenha razão: Tribos antigas da Índia e da África já usavam os dreadlocks, assim como a trança, centenas de anos atrás. Algumas o faziam como costume local, pela dificuldade de manter os fios no lugar e outras para representar a ligação espiritual, com os “homens santos”.
O casal parou comprar ovos na banca que, pra minha alegria, não tinha mais nenhum vestígio bolsonarista. No domingo anterior, quando me aproximava, a moça de quem sou freguês há anos, e é a dona da banca que herdou do pai, me perguntou se era o de sempre (15 ovos grandes brancos) e eu disse decepcionado: Você é bolsonarista! Ela deu um risinho sem graça. Não levei ovos dela. Ontem, as bandeirinhas e fitinhas não estavam mais enfeiando sua banca, unhas e blusa. Ela me viu e, timidamente, perguntou: Tudo bem? Eu respondi: Bem… Ela entendeu o que eu estava querendo dizer e sorriu: O de sempre? Eu confirmei, o de sempre.
Não tenho ilusão sobre o voto dela, mas de não me agredir com seus adereços já me dei por satisfeito.
À tarde, ao abrir o noticiário, leio a nova pataguada do presidente: Pintou um clima! Que ser abaixo da altura do seu cargo!
À noite, vejo o começo do debate. Foi suficiente para entender que ocorreu o tratamento de sempre, como se de um lado estivesse uma ideologia e do outro, outra. Só por isso, Bolsonaro já saiu vencedor.