Terno cinza

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Estou digerindo muito lentamente abruptas mudanças que irromperam em minha vida sem eu ter tido a possibilidade de perceber a chegada de cada uma. 

Passei da fase de lamentar, culpar, espernear, enfim, do siricutico. Tento entender o momento de minha lentidão, pois se havia uma característica da qual me orgulhava era a de apreensão dos elementos do todo de uma situação. 

Cotidianamente, em particular nas questões de trabalho, sempre soube “ler” o ambiente e suas circunstâncias, mas o fato é que estou letárgico. 

Três possibilidades me ajudam na busca dessa compreensão:

A) Seria um efeito colateral da Covid19? Não sei se explica, mas é fato que algo mudou em mim. Talvez o vírus tenha mesmo organicamente me afetado ou o ambiente de desamor, desânimo e morte seja a causa de minha letargia.

B) Seria consequência de meus 55 anos?

Essa é uma possibilidade a ser levada em conta. Outro dia saí de bermuda e sentado numa mesa me peguei olhando para a minha coxa, próximo ao joelho, e percebi a pele ressecada, enrugada para ser exato. Não reconhecia minha coxa como sendo minha, mas era. A pele envelhecida, fina, como vi em minha coxa, é a prova, e não um sinal ou evidência, de que não estou mais jovem. 

C) Minha letargia seria uma tristeza dolorida pela realidade dessa ruptura na percepção do mundo, envolvendo pessoas que fizeram parte de minha história? 

Certamente sim. A cada partida, um luto. Mas também uma possibilidade. Uma chance de um novo encontro. A oportunidade de um caminho nunca antes pensado. 

Tenho me martirizado nos últimos dias por minhas escolhas, por meus posicionamentos, por meus lamentos, por lentamente perceber a necessidade de me comprometer com o presente. 

Aos 55 anos, não estou mais apto. São perdas me mostrando o valor do que tive e impactando a riqueza de memórias acumuladas, de possibilidades deixadas para trás, do valor afetivo das muitas cores se desvelando. O passado é reconfortante. Mas se não for leve, torna o presente incômodo, quase impossível. O passado pesa e não consigo me mover. O presente precisa ser leve (portanto o passado não pode ser carregado) para eu ter possibilidade de me mexer. 

Não é necessário só o movimento para se chegar ao futuro. Ao contrário, é preciso sonho, desejo, planejamento, organização, estratégia e ação. Lendo “O Homem num Terno de Flanela Cinza”, me dou conta que ele não é apenas o nome do livro de Sloan Wilson.

É o exemplo de uma literatura capaz de descrever a alma de uma sociedade. No caso a nova-iorquina do pós-guerra na década de 50. Por analogia, o meu momento neste 2022 da pós-pandemia/eleição. Estou me desvestindo do terno cinza. Ao final desse processo, estarei desnudo. Deixarei pouco a pouco pelo caminho o peso do passado, como ficam os pedaços das coisas de um náufrago boiando no mar.

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