Simetria 

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O senhor quer mais um café?

Assim Jaine interrompeu qualquer ilusão que eu estivesse, inconscientemente, tendo em relação a ela. Conscientemente eu não tinha interesse algum nela.

Sua cabeleira estava presa sob um turbante, uma espécie de toca, com o nome do estabelecimento onde ela trabalha. Sua boca e nariz ficam cobertos pela máscara que se popularizou na pandemia da Covid19. Óculos de aro de metal disfarçam seu olhar, mas não suas sobrancelhas preenchidas com tatuagem, me parece. Consigo ver seu antebraço fora da camiseta e avental do seu uniforme e ele indica sua juventude e magreza. Seu pescoço é liso, fino e frágil. Com apenas uma das mãos ele poderia ser estrangulado.

Não, obrigado, vou ficar apenas nesse, respondi.

A minha voz saiu sem vigor e isso chamou a atenção de Jaine. Ela que passava um pano embebido em álcool na mesa onde alguém havia derrubado grãos de açúcar mascavo, eram marrons, interrompeu o movimento e me olhou. Eu não disse nada. Por fração de segundo nossos olhos ficaram um mergulhado no outro. Eu pensando: Estou com cara de senhor, pois ela me vê como senhor. E ela pensando: Está tudo bem com esse senhor? Sua voz saiu frágil demais…

Quando desviamos os olhos, ela se concentrou em sua tarefa e eu voltei ao meu livro… Mas interrompi a abertura das páginas, pois, neste instante, descubro um pequeno ponto marrom nas costas de minha mão direita, bem na direção do último nó do meu indicador. A primeira mancha de senilidade chegou sem aviso algum. Quando ela se instalou? E, surpreendentemente, o mesmo ponto marrom apareceu no mesmo lugar em minha mão esquerda. E penso: Então elas nascem conjuntamente. Para quem tem um pouco de toc, como eu, foi um alívio tal simetricidade.

Perdido olhando para o ponto, me vi na lembrança do sonho que tive nesta noite. Sendo preciso, já era quase de manhã. Uma claridade vislumbrava na linha do horizonte que só foi possível eu ver porque não fechei, antes de me deitar, como faço diariamente, a cortina black-out. 

Estava sentado na poltrona do corredor, como sempre aliás, no avião. Do alto falante, o comandante, bem acho que só podia ser ele a falar com passageiros e tripulantes, diz: Informo que daremos um mergulho de seis metros,… e penso como ele sabe a precisão do mergulho, e… e o avião entrou na água e sua voz foi interrompida. Não houve estrondo, berreiro, pânico algum. Silêncio total e absoluto. Então, com a chave da porta da lavanderia de casa, que eu carrego no bolso da calça, consegui cortar o tecido do cinto de segurança, sua trava havia emperrado. Tirei o acento e fiz dele um guia e saí nadando apenas batendo as pernas. As pessoas estavam presas em seus acentos. Entrei na cabine e não havia comandante e nem ninguém. A porta estava aberta e pensei: eles conseguiram sair. Eu subia do fundo do mar, quase sem ar, perdendo o sentido, mas tive a iniciativa de dizer a mim mesmo: crave seus dedos neste acento de poltrona. Eu não conseguia mais bater perna e o acento me puxava pra cima lentamente. Ainda vi a luz lá em cima e pensei vou conseguir… Então o avião começou a subir numa velocidade maior do que a minha, como se bolsas de ar o tivessem impulsionado, e me pegou. Irrompemos à superfície e com a força fui jogado pelos ares. E voei.

E…, ridiculamente, como todos os sonhos, acordei sem saber o que aconteceu ou como essa história termina. Suado. Encharcado. Demorei bons segundos pra me dar conta que não passou de um sonho. Um sonho bastante ridículo por conter tantos elementos infantilizados.

Volto a atenção às minhas duas primeiras manchinhas de senilidade… simétricas.

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