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Há sete anos, no dia 19 de outubro de 2015, chovia muito. Era uma madrugada para ficar na cama, ouvindo o barulho das gotas no telhado, das folhas das árvores balançando.. Mas dirigi por mais de três horas por estradas que nunca havia passado até te encontrar pela manhã.
Você não ficou nada bem naquele caixão. Não que estivesse feio, pois não estava. Você ficou bem cuidado e bonito para a circunstâncias. Peguei pela última vez nas suas mãos e tantos anos depois ainda as sinto comigo. Tive a impressão que elas estavam maiores. Vi as minhas tão menores que as suas… Havia marca de sangue pisado numa delas, um reflexo do AVC que te matou. No seu rosto e pescoço a maquiagem disfarçou bem pelo que você passou.
Fico pensando se você se foi instantaneamente e sem dor. Ouvi dizer que teve uma dor de cabeça insuportável e aos poucos o sangue deixou de circular. Nunca será possível saber, apenas imaginar se houve dor e que dor foi essa.
Ainda hoje penso nisso e foi nisso que pensei enquanto segurava suas mãos. Sua mãe estava um trapo. Sentada numa cadeira ao seu lado, na minha frente, do outro lado do caixão. Me pareceu que ela estava de peruca. O tratamento do câncer a deixou careca. Mas era sua ausência que a deixava desolada. Me lembrava da mulher linda que conheci em 1985. Que dama… Não havia nem sinal dela ali.
Sua irmã não conseguiu, ou não quis, esconder a raiva que ela estava sentindo. Veio me dizer que você morreu do jeito que queria, cercado de jovens. Então me lembrei que seu AVC se deu num momento de sexo, intenso, num quartinho de hotel. Havia um misto de reprimenda moral e admiração na raiva de sua irmã. Ela acha que você procurou por isso. Talvez ela não esteja errada. Mas qual seria a alternativa? Se cuidar? Para quê, me pergunto? Estamos aqui para viver, afinal. Não para não-viver até a morte chegar. Você foi admirável até o fim. Do começo ao fim. O começo partiu de você. Me abordou na saída do ônibus na rua Francisco Glicério, era a primeira semana de aula e então nasceu uma cumplicidade rara, de confiança e construção de um amor impossível de um outro qualquer entender. Como usavam as réguas deles para nos medir, sempre chegavam a conclusão errada sobre nós. E isso nada nos importou. Nem quando minha ex-mulher veio me dizer que fulano disse a ela, surpreso por eu ser ex-marido dela, que nós havíamos sido casados. Nunca me importei com o que pensavam de nós, apenas conosco.
Ainda hoje o grito de sua tia: Carlinhooooooooooooosssssss…. Um grito de súplica! Um grito de desespero… Tão forte, agudo e afinado… me persegue.
Fico pensando, você, meu Carlos Magno, era o Carlinhos da família tradicional araraquarense. O Carlinhos que me levou ao Country Club para jogar tênis… Que amou sua sobrinha desde que ela estava na barriga da sua irmã… Que gostava do marido dela, mas odiava o reacionarismo político dele. Você ia odiar pelo que estamos passando há cinco anos. É patético! Certamente seu cunhado está financiando alguém para estar passando vergonha na porta de algum quartel. Evidentemente que ele próprio não está lá. Seu irmão? Bom, ainda não sei qual a verdadeira diferença de vocês. Mas depois que seu caixão baixou na cova e seu corpo ficou trancado naquele bonito cemitério, eu parei numa padaria comer um pão com mortadela (sim, ainda não apareceu uma circunstância para me tirar a vontade de comer…) e seu irmão entrou. Parou ao meu lado e agradeceu a minha presença. Nós sorrimos um ao outro. Ele me deu um cartão com endereços e números. Foi simpático. Eu nunca entrei em contato… Se houvesse motivo, você sabe que eu entraria.
A Fernandinha toca a vida dela. Ela cuidou de tudo. Até do obituário que a Folha de S.Paulo publicou. Vou te falar, um texto horrível e recheado de mentiras ao seu respeito. Não há lá uma linha sequer sobre Machado de Assis, Stravinsky, Nina Simone, Caetano, Baudelaire… Homenagearam um homem de Araraquara. Que “venceu” na vida e “ao acaso” foi acometido por um acidente vascular… Não você. Mas o que isso importa para nós, não é mesmo? O jornal te retratou como babaca… Que surpresa há nisso? Nenhuma. A única verdade ali é que você morreu no dia de 18 de novembro de 2015.
Assim como em qualquer outra notícia de jornal, onde a única verdade é o fato e todo o mais somente o delírio de algum arrogante ser que se arvora o título de jornalista, seu obituário serve de documento.
Não houve missa de 7 anos de sua morte. Não houve um encontro das pessoas que te amavam. Não falamos, os seus amigos, sobre você. Mas isso não quer dizer que você tenha morrido. Você vive!
Nunca mais procurei amigos. Nem sei se é possível isso. Não acho que amigos são procuráveis. Amizade é um processo de entrega que começa com algumas banalidades cotidianas como um olhar, um gesto, um toque que desperta em um e outro um sentimento de que vale a pena. É, necessariamente, que ambos sejam tocados. Não acontece amizade se for unilateral. E foram algumas minhas experiências neste sentido, de ver dedicação de um lado apenas, que me permitem dizer isso. A amizade é uma construção cotidiana que se dá em partilhas, aceitação e acolhimento.
Apenas duas vezes me aconteceu isso na vida. Você morreu e outra amizade…
Você vive! Quem sabe eu sugira a criação do Dia do Carlos Magno e, todos os anos vindouros, os que te amam se encontram para beber, fumar… e falar sobre o quanto importante você é. Quem sabe… Ando mais preguiçoso ainda. Mas quem sabe… Acho que a Dani Prandi e o Ricardo Cruzeiro têm mais energia pra isso.

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