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Em maio do ano que vem, “As Noites em Flores” completará 20 anos de existência. Não sei se a data de maio de 2003 é quando ela foi escrita ou publicada. E pouco importa.

O livro (uma pequena obra-prima, do meu ponto de vista, que fique claro, pois não sei o que outras pessoas, mais bem qualificadas do que eu, pensam sobre ele) é a essência contemporânea daquilo que ficou conhecido por literatura fantástica.

A narrativa tem velocidade, ritmo, constância e aceleração até dar uma porrada contra o imprevisto. Paralelo à narrativa há a história narrada, no caso de “As Noites de Flores” uma aventura surreal com todas as personagens se conectando e, também, se encontrando no final. É o tipo de livro que se lê não pela história (embora também por ela), mas pela forma.

O acaso é o método que eu uso para escolher os livros que leio a partir de alguns critérios: O financeiro (se posso compra-lo); O que li a respeito (comentários, resenhas ou críticas); O que trata do que eu gosto (a complexidade da existência a partir de um núcleo familiar ou social).

Assim cheguei, além de “As Noites em Flores”, também em “Os Fantasmas”, “Pequeno Manual de Procedimentos”, “O Santo”, “A Trombeta de Vime”, uma pequena parte dos mais de 60 livros já escritos por César Aira.

Não vou dizer que ele seja meu autor preferido, mas certamente figura ao lado de Domenico Starnonne, Alice Munro, Mário Benedetti e Jonathan Fraser.

Minha curiosidade aumentou sobre César Aira quando participei de uma oficina de literatura latino-americana com o escritor brasileiro Joca Reiners Terron autor de dois livros que valem a pena de serem lidos “Noite Dentro da Noite” e “O Riso dos Ratos”, embora ele também seja autor de outros que ainda não li. Na oficina, fiquei sabendo sobre seu método de trabalho que consiste em, diariamente, escrever pelo menos 500 palavras. É como um quebra-cabeças, hoje você tem 500 palavras, amanhã mais 500 e mais 500… até que você pára, olha para o seu conjunto e então monta as partes possíveis de serem apresentadas como uma narrativa ao leitor.

Essa curiosidade e o acaso (minha filha foi participar de um congresso e me levou junto pagando-me tudo) me levaram na semana passada até Buenos Aires, onde Aira vive há boas décadas. Fui atrás dele. Não tinha endereço algum, mas referências como o fato dele morar em Flores. Eu já havia estado algumas vezes em Buenos Aires, uma das minhas cidades preferidas, mas não conhecia Flores. San Jose de Flores. Nome que descobri quando ingressei no metrô. Podia ir de táxi, evidentemente, mas é um bairro que fica a 15 quilômetros da região turística e isso custaria, imagino, algo equivalente a 100 reais. De metrô, não custou 1 real. Na verdade custou porque para entrar no metrô é preciso de um bilhete e para ter o bilhete é preciso se cadastrar, pagar pelo cartão e carregar uma quota mínima. Para tudo isso gastei 5 reais, 300 pesos.

Desci na Plaza de Flores, na calçada da Basílica, na avenida Rivadavia. Em minha vida de repórter, eu era bem sucedido em encontrar pessoas. Dois ganhadores da loteria (equivalente a MegaSena) em Sorocaba, que deixam o vencedor milionário da noite para o dia, foram descobertos por mim após dezenas de perguntas e entrevistas.

Ao sair do metrô peguei à esquerda (sempre faço isso depois que descobri que as pessoas, a maioria é destra, segue à direita quando precisam pegar um caminho à esmo, uma fila, uma rua). Parei numa livraria, o que é o mais óbvio, no açougue, padaria, quitanda, lavanderia perguntando de César Aira. Para minha surpresa, todos diziam algo parecido: já ouvi falar que ele mora aqui no bairro, mas nunca entrou aqui. Minha esperança eram os cafés. Também não fui bem sucedido.

Quando cheguei num sebo, o dono do local, pouco receptivo, o que é raro em Buenos Aires uma cidade cujo o turismo, certamente, se não foi a maior é uma das principais fontes de renda, tirou a esperança que eu tinha. Sebo é um dos locais onde um escritor, certamente, frequenta. Estava saindo, quando uma funcionária, toda empoeirada, sentada num banquinho bem perto do chão, arrumando os livros que o freguês quase nunca olha porque para vê-los é necessário se abaixar, me disse que César Aira já tinha ido lá algumas vezes. O dono olhou espantado para ela, pois ele não sabia dessa informação, foi o que entendi. Então ela me disse para cruzar a Rivadavia, eu havia dado uma volta no quarteirão da praça de Flores, e descer seis quadras até o Bar Farmácia. No meu pobre castelhano, levei um tempo para entender que o local, um Café, Bar Resto tem o nome de Farmácia. E entendi graças à simpatia daquela moça e paciência em me fazer entender.

Uma rápida pesquisa no google traz a história do local: La Farmacia Restobar. O motivo do nome (lá havia sido uma farmácia antes de ser café), quem já frequentou e como ali se tornou um ponto turístico para quem gosta de literatura. Eu, como havia feito uma péssima lição de casa, só soube o que sei do local quando já estava sentado numa de suas mesas. Eu já havia comido em todos os locais onde havia passado antes de chegar lá, mas tem uma coisa que não resisto: comer o que a pessoa da mesa do lado está comendo. Assim pedi ao garçom “um igual ao dele” e apontei. Me chegou um sanduíche num pão que eles chamam de Felipe (uma espécie de pão francês só que mais mioludo) com queijo e presunto cru. No local, um jovem trabalhava no seu computador (seria um escritor?); dois senhores, na casa dos 80 pra mais, tomavam café e papeavam; uma senhora comia uma tortilha (espécie de fritada de batata); mais para o fundo haviam casais… Não era hora de grande movimento. E Miguel, o garçom, me deu total atenção. Me levou até uma parede com fotos de famosos que já estiveram ali como Mário Benedetti e César Aira, este numa foto posada. Não um clique do seu rosto como as dos outros. Aira estava sentado dentro de uma banheira (essas de tomar banho) – uso a mesma foto para ilustrar essa postagem. Miguel me contou que é sagrado quase que todos os dias Aira chegar ali, por volta das cinco da tarde, pedir um café preto e sempre escrever alguma coisa. Ele tem uma caneta preta, tipo Parker, me disse ele. Alguma coisa ele sempre escreve, me disse Miguel.

Eu olhei no relógio e vi que eram 4 e meia. Daqui a pouco me encontrarei com Aira, pensei. Então, me levantei, e pedi a conta. Miguel estranhou e pediu para eu esperar só um poquito más que ele já estava chegando. Eu lhe agradeci, sem lhe dizer nada, e fui. Pedi que lhe mandasse um abraço. De um leitor brasileiro. Chegava ao fim a minha tarde em Flores. Apenas de ter ido até o Café Farmácia me senti invadindo a privacidade de Aira. Se tivesse esperado por ele, o que iria querer saber? Há muito tempo sei que a obra e seu autor (isso vale para escritor, jogador, ator…) são distintos. Que é ilusório querer achar no autor o que se vê em sua obra. Podia ter tirado uma foto, uma selfie com ele, pedir um autógrafo… Para quê! Me sentindo um imbecil, caminhei seis quadras rumo ao metrô sem nem olhar para trás. Nas 10 ou 12 estações que me separavam do hotel aonde estava, fui olhando as dezenas de fotos que fiz em Flores. Fotos que por um tempo, até eu esquecer, estarão apenas em minha memória, pois esqueci meu celular dentro do táxi que me levou até a estação rodoviária quando ia tomar o ônibus para me trazer de volta.

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