Compartilhar

Os atos de terrorismo promovidos no último domingo em Brasília, inaceitáveis e reprováveis de qualquer ponto de vista, promoveram várias reações: 1) Detenção imediata de mais de 1 mil envolvidos; 2) Indignação e manifestação de apoio da comunidade internacional à legitimidade da eleição; 3) União de políticos de diferentes ideologias em torno da democracia. 

Em meio a isso tudo, o governo criou um e-mail para receber informações sobre quem eram os invasores, financiadores e incentivadores do terrorismo. Militantes usaram suas páginas pedindo que as pessoas entregassem qualquer informação. O jornal O Estado de S.Paulo estampou que, sozinho, sua equipe havia identificado 88 terroristas. 

Essa tática, de fazer do cidadão comum um agente do governo, já havia sido usada durante a ditadura militar. 

A jornalista Hildegard Angel, que viu seu irmão sumir durante a ditadura, relata que naqueles anos “(…)dedurava-se, delatava-se, caluniava-se a três por dois, qualquer desafeto que atravessasse o caminho. O marido ciumento entregava como ‘subversivo’ o vizinho, de quem desconfiava estar cortejando sua mulher. Sei de um caso em que o vizinho foi levado para averiguação e nunca retornou  (…)”.

Algo similar já ocorreu agora: Uma das execráveis cenas de domingo foi aquele homem defecando. Alguém tratou de dizer que se tratava de Fulano de tal, funcionário do Banco do Brasil. E a identidade funcional circulou nas redes com muita gente, inclusive advogado com OAB, pedindo a sua exoneração a bem do serviço público. Só que o tal Fulano de Tal, funcionário do BB, não é o que aparece na foto. Num roteiro kafkiano, ele tenta provar que ele não é quem dizer ser…

Nunca gostei dessa estratégia de fazer do cidadão comum um agente do governo de plantão em que pese, no atual caso, o fascismo golpista de terroristas. Em meio a boa intenção também existe a má. 

Dedurar alguém transforma a pessoa em dedo-duro do mesmo jeito que matar a transforma em assassino. Não importa se um estuprador invadiu a sua casa e ameaça sua família, o que é reprovável, execrável, absurdo, mas se o matar, automaticamente se torna um assassino. Este é o ponto. Queremos nos transformar no que não somos mesmo que a causa seja maior?

Ao acaso, na noite de quarta-feira, revi no canal Universal Estúdio o filme Perfume de Mulher, de 1992, com Al Pacino. Há um filme de mesmo nome, italiano, de 1974. Em que pese o filme se sustentar na cegueira da personagem e sua busca de sentido pela vida, o argumento que permite o desenvolvimento da trama é se o jovem, ator coadjuvante, se mantém fiel aos seus princípios ou se vira dedo-duro de colegas  de faculdade que ridicularizaram o diretor. 

Esse é um dilema humano. Tento entender que, neste momento, queremos todo e qualquer fascista, golpista, terrorista punido no critério da lei. Mas não aprovo essa manipulação do Estado em incentivar a prática de ser dedo-duro. Essa responsabilidade é do governo de plantão por mais que isso demande mais tempo para a autoridade identificar o bandido. A pressa gera injustiças irreparáveis contra a individualidade de quem for, erroneamente, apontado como culpado e, também, em quem se transformou no que até então não era.

Comentários