Quando eu saí do restaurante com a quentinha pretendia comer mais tarde o que havia sobrado do almoço.
Então um jovem sujo, daquela sujeira de quem mora na rua, dorme embaixo de marquise de lojas e bancos, e usa folhas de papelão para não se deitar diretamente no chão, não sujo da graxa de uma oficina ou da poeira de um depósito de mercadorias enlatadas ou encaixotadas, se dirigiu a mim balbuciando sons que poderiam ser palavras, mas não entendi quais, mas compreendi o seu desejo, pois era evidente a mensagem externada por sua mímica: Me dá o que você carrega nesta sacola.
Dois passos depois, um velho, igualmente sujo de morar na rua, não escondeu sua decepção por não ter sido agraciado com a comida. Eu lhe disse, apontando o jovem: Ele vai repartir. Ele respondeu: Esse aí não reparte. E o jovem ouviu de mim: Reparta com ele. Fui tão imperativo e incisivo que consegui que metade de uma linguiça fosse dada ao velho. A outra metade ele mastigava. E a outra linguiça inteira ele deu para uma mulher deitada no canteiro central da avenida Júlio de Mesquita.
Já estava na calçada do outro lado quando ouvi, do jovem: Viva São Pedro e obrigado, tava uma delícia…
Amém, foi o que respondi.
Não estavam bêbados, nem desconectados do senso comum da realidade. Mas alguma coisa naquele velho e jovem contraria todo senso comum das pessoas que estão na rua. Se espera que sejam bêbados, do tipo doente de alcoolismo, que não conseguem viver sem a bebida em seu organismo. Se espera que sejam loucos, no sentido de uma vida organizada dentro de um universo de sentimentos e compromissos individuais, de um mundo totalmente particular, de negação do mundo onde as outras pessoas estão, geralmente pessoas que sofreram um grande trauma numa relação amorosa ou familiar. Mas aqueles dois não eram assim.
A mulher deitada no canteiro central, e tão bem cuidada pelo jovem que lhe deu a maior parte da minha quentinha, tinha uma altivez digna de quem tem autoestima.
Mais uma coisa ainda estava fora do senso comum de quem mora na rua, e está desconectado da realidade e isso me causou estranhamento: Nenhum dos três eram pessoas tentando subir novamente, sair da sarjeta e ter um lugar para ir ao final de qualquer coisa, qualquer uma mesmo, sair do trabalho, do bar, da igreja, do clube… Eles não estão nessa vida “normal” e nem tentam alcançar ela.
Mas o que me incomodou, de verdade, foi ver um verdadeiro sorriso de alegria daquele jovem. De satisfação. Como o de um cachorro preso no quintal quando recebe seu prato de ração e água fresca. Comer não é a razão da existência do cachorro ele come pelo instinto de compreender que aquilo lhe dá energia para correr e latir por toda extensão do quintal a qualquer movimento do lado de fora da cerca. Quando cansa, deita na sombra. E pega no sono. E só se levanta quando outro movimento estranho é percebido.
E aquele jovem deitado com a mulher no canteiro central? E aquele senhor, na marquise da calçada do outro lado da rua?
Me pareceu que o jovem era o movimento estranho do senhor e o senhor, do jovem. Eles vêm se acompanhando nos últimos anos. Há uma cumplicidade entre eles.
Me pareceu que o velho olha, no sentido de cuidar, de saber, do jovem. E vice-versa.
Me ocorreu que o velho possa ser o pai dele e mergulhar no mundo do filho tenha sido a maneira de “ficar” perto dele. Ou vice-versa. Mas não tenho como saber se isso é verdadeiramente verdade. Talvez seja só imaginação minha. Talvez eu tenha sido traído pela felicidade daquele jovem. Talvez…