Guaraná champagne 

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Voltava para casa depois de uma reunião promissora para projetos futuros, numa conversa que fluiu com espontaneidade, com um tema que adoro, a literatura. 

Parei no posto de gasolina na rodovia Castello Branco e entrei no restaurante local. Me vi, de repente, olhando para o pastel da vitrine. O pastel despertava em mim a memória da Júlia da Iládia do tio Antenor, como gostava de explicar minha mãe toda vez que se referia a ela, emendando as palavras. Tia Júlia, que não era de fato minha tia e nem de minha mãe, fazia o melhor pastel do mundo. Crocante, pururuca, de dar água na boca.

Perdido na lembrança do pastel da Júlia da Iládia uma moça, agachada atrás do balcão, guardando latas de guaraná Antárctica, que eram os únicos guaranás de minha infância e chamado de Guaraná Champagne, me fala: Tenho uma camiseta igual a sua. Simpático, eu respondi: Você tem bom gosto. Ela riu.

O assunto poderia ter acabado ali, mas prolonguei com a pergunta: Quem te deu? E ela, num tom de indignação, respondeu: Eu mesma comprei. No site da loja, ela frisou. Eu devolvi: Ganhei da minha filha, a que se chama Júlia por causa do pastel da JúliaDIládiaDoTioAntenor. 

O assunto estava acabando e então ela resolveu dar continuidade me perguntando: De quem é essa frase?

Ela se referia ao que está escrito na camiseta “Não sei, só sei que foi assim”.

Eu respondi: Ariano Suassuna. E ela, taxativa, retrucou: Foi Chicó em “O Auto da Compadecida”. Então, lhe disse, quem escreveu esse livro foi o Suassuna… e ela, num tom de indignação: Mas quem disse essa frase foi a personagem Chicó.

Então eu bambeiei como um boxeador bombeia ao levar um cruzado no queixo. 

O personagem fala o que o autor muitas vezes nem pensou, me disse ela. E eu mudo. Sem saber o que dizer, parado igual um pateta olhando pro pastel de queijo. E ela tirando suas latas do fardo plástico e ajeitando dentro da geladeira. 

Então resolvi ir à forra. Mudando de assunto. E do nada falei: Ela traiu.

Indignada, ainda agachada, ela me respondeu veementemente: Claro que não. Deveria, mas não traiu. 

Eu, então, disse: Agora você está enganada. Claro que traiu, eu disse, e mostrei a ela a crônica “Não traiam o Machado” de Otto Lara Resende, publicada nos anos 80 na Folha de S. Paulo, numa época em que com certeza ela nem havia nascido. Estiquei meu braço para que visse a imagem do texto da crônica em meu celular. E citando Otto fui enumerando capítulos e trechos “provando” a traição.

Ela não se fez de rogada e falou: Bentinho era um babaca. Isso ninguém discute. A Capitu não traiu, o que lamento, pois ele merecia. Mas ela preferiu se manter íntegra. 

O menino era a cara do Escobar, eu disse. Era, ela retrucou, mas pelo olhar da mãe do Bentinho, o que não significa nada, pois ela via o que queria. 

De novo, perdi. Não há argumentos contra esse fato.

Falei xau. Ela também, emendando: Vou voltar ao Machado. Sempre é bom. 

Saí do restaurante sem comer pastel (ele sequer se parecia com o da tia Júlia) e com um sorriso no rosto pensando no refrão de um roque dos anos 80, de uma banda que não recordo qual era, que dizia: …Tudo pode estar/ onde menos se espera…

Eu sei, no sentido de intuição, que existem leitores. Só não sei onde estão. Nunca poderia imaginar que fosse atrás de um balcão guardando Guaraná Champagne na geladeira.

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