Meu amigo balconista

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Eu estava na padaria quando me dei conta que não conhecia o jovem que me atendia.

O que me chama a atenção no comércio é a rotatividade de funcionários. Quando eu começo a sentir uma certa familiaridade com algum, ele some.

Eu puxo papo com todos. Ou quase todos. É um modo de deixá-lo à vontade no novo trabalho e, também, curiosidade minha.

A primeira pergunta que faço é de onde são. E a partir daí entabulo pergunta após pergunta cujo as respostas me ajudam a entender onde vivemos. Não apenas em termos de bairro ou cidade, mas de país.

Todos, com certeza a absoluta maioria dos jovens que trabalham nos balcões, saíram da cidade onde nasceram e estão em movimento, buscando a melhor oportunidade para parar.

Isso, parar de andar, geralmente acontece quando os hormônios estão numa agitação incontrolável e precisam de apaziguamento. Não raramente um filho é gerado. Menos raro ainda que ele não fique apenas com a mulher.

O menino novo no balcão da padaria é um desses, filho de uma migrante. Ele me disse que é “daqui mesmo” quando lhe perguntei: De onde você é? 

Eu acho essa pergunta tão complexa. Não sei o que eu responderia (nunca me perguntaram isso), mas certamente não seria uma referência geográfica.

“Vivo só com a minha mãe”, quando lhe perguntei se ele morava com os pais. Eu tenho duas alternativas para seguir com minha “entrevista” quando ouço isso. Escolho sempre o ausente, o pai.

“Não sei, eu não conheci ele (sic)”. Foi o que me respondeu quando eu quis saber onde pai dele estava. Você tem o sobrenome dele? Não, me respondeu. Quando eu lhe disse que Oliveira era português, após ele me dizer que este era o seu, ele me corrigiu dizendo que era brasileiro mesmo.

Eu lhe disse que não existe brasileiro. “Não?”, ele reagiu surpreso. Eu disse que se ele tivesse vindo dos povos originários haveria então a chance dele ser “brasileiro”. 

Ele não sabia o que era povo originário. Ele não sabia que somos filhos de ampla miscigenação imigratória. Ele não sabia que Oliveira, o nome de família dele, é o nome de um cristão novo, ou seja, um judeu que se adaptou. Ele não tem noção de que a guerra do momento envolve uma questão milenar.

Meu novo amigo balconista, aos 19 anos de idade, não tem noção de que é consequência de atitudes tomadas por sua mãe e seu pai, mesmo que ele não saiba quem seja ele.

Não há hereditariedade no que somos em alma ou espírito, há apenas no que nosso corpo é: A cor dos olhos, tipo de cabelo, tom da pele, estrutura óssea, doenças… tudo que nos chegam pelos genes. Mas é só. A cultura não é hereditária. A cultura é um processo de difícil construção fruto da interação nossa com quem nos cerca.

Saber quem são nossos geradores é um direito do qual ninguém deveria ser alienado.

Para nascer são necessários uma mãe e um pai. Não se nasce só de um, todos indistintamente sabem disso. Portanto também são necessários 4 avós, 8 bisavós, 16 trisavós, 32 tataravós, 64 pentavós, 128 hexavós, 256 heptavós, 512 octavós, 1024 eneavós e 2048 decavós. Somos, sim, fruto de dez gerações. Saber um pouco sobre essa história ajuda a entender o momento e a ver que o futuro não existe, ele é apenas consequência do que estamos construindo no presente.

Meu amigo balconista é preto. Ele não conectou isso, ainda, com quem veio forçosamente, como escravo, ao Brasil. Nem ao fato dele estar atendendo no balcão e seu gerente ser branco. Isso para não falar do dono da padaria.

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