Este é o segundo livro que leio em 2024 e, como expliquei no primeiro livro lido neste ano, vou fazer o fichamento de cada um deles.
Nove noites
O antropólogo americano Buell Quain, aos 27 anos, em 1939, se suicidou na aldeia dos índios krahô, situada na divisa do Maranhão com o Tocantins, quando se imaginava que ele se preparava para regressar para a cidade de Carolina, a civilização mais próxima da tribo.
Este é um fato. É a realidade. É o Brasil da Ditadura de Getúlio Vargas, momento de desconfiança e totalitarismo do chamado Estado Novo.
Este dado, perdido com o tempo, é um pequeno parágrafo no meio de um artigo de jornal, um detalhe, portanto, onde o tema central era um outro antropólogo.
Mas esse detalhe foi o suficiente, em 2001, para que um leitor deste artigo se perguntasse: Por que ele se matou?
A resposta a essa curiosidade é o romance “Nove Noites” de Bernardo Carvalho.
Uma resposta construída a quatro vozes.
A voz do narrador/autor, ou seja, o próprio Bernardo Carvalho, contando a nós, seus leitores, o que despertou sua curiosidade neste suicídio e quais caminhos ele percorreu para encaixar, como num quebra-cabeças, as peças que ele nos faz crer ao longo de toda narrativa nos dará a resposta para sua pergunta inicial. É um narrador na perseguição do sentido do existir. É como se um jornalista contasse ao seu leitor a história do que ele passou para fazer sua reportagem.
A outra voz, que não existiu na realidade, portanto nunca esteve com Buell Quain, é o que todo autor faz, uma personagem inventada. É o que o autor imagina que um amigo dissesse a outro. Interessante é a saída encontrada pelo autor para que alguém que viveu em 1939 como adulto, e já estando morto, contasse uma história para esse alguém no início do século 21. É dessa voz que nasce o título ao livro.
A terceira voz é a de Buell Quain e suas cartas e a última as remetentes das cartas de Quain.
Não é um romance simples de ser lido, mas é tão bem narrado que não confunde o leitor. Ele sempre tem clareza sobre quem está falando. Para ajudar, quando é a voz do amigo, as letras estão em itálico, ou seja, é uma garantia a mais de que o leitor não fique perdido sobre quem fala.
O livro, portanto, têm duas histórias. A primeira na voz do narrador/autor de perseverança, de inteligência, de curiosidade contando como foi construída a história contada para nos dizer o que levou ao suicídio.
A segunda história sobre quem foi Quain até chegar a tribo de índios brasileiros, de onde veio, por onde viajou, sua homossexualidade, sua solidão, sua vergonha, seu talento, sua solidão, seu suicídio.
São histórias bastante distintas que estão em sobreposição de modo que o leitor, falo por mim, evidentemente, consegue interpretar que a história do narrador/autor ao tentar descobrir quem era Quain é a mesma do antropólogo Quain ao tentar desvendar quem era o povo primitivo, originário do norte brasileiro.
Se vale a pena ler o livro? Evidentemente que sim. O livro levou o Prêmio Portugal Telecom (2003) e o Prêmio Machado de Assis conferido ao melhor romance do ano pela Biblioteca Nacional (2003).
Em duas décadas desde sua publicação, o livro se mantém atual a ponto de que se tivesse sido escrito agora muito pouco, ou nada, teria a ser acrescentado à primorosa narrativa.
Eu gostei de ter lido e espero que você também goste.