Fichamento n°8

Compartilhar

“Solitária”, o título do saboroso e importante livro de Eliana Alves Cruz, é um termo bastante ligado a quem o lê, ou seja, seu significado diz respeito a história do seu interpretante.

No meu caso, ouvi este termo pela primeira vez quando eu tinha 7 anos. Estava na calçada de casa na esquina das ruas Moreira Cabral e Souza Moraes com minha mãe e a dona Maria, nossa vizinha, onde eu adorava ir tomar cafe. Então um carro que vinha numa rua bateu no que vinha em outra e um deles foi jogado pra cima de nós. Por sorte, ele bateu na parede ao lado de onde estávamos. A cena seguinte que me lembro é de minha mãe e eu dentro de um fusca laranja e preto, da polícia. Minha mãe foi levada para falar com o delegado na delegacia da Vila Progresso. Então lá vi um corredor escuro e no final uma porta. Um soldado empurrava um homem pelo cangote e berrava: Vamos ver quanto você aguenta aí na solitária. Não me lembro como minha mãe e voltamos para casa, mas nunca mais me livrei do pavor daquela cena e do sentido cruel da palavra.

Há quem possa pensar que o livro trata da história de alguém que esteja muito só. Isolada.

Mas basta pegá-lo em mãos, ler a orelha e contracapa para saber de qual solitária se trata o livro, ou seja, o quartinho dos apartamentos destinado às empregadas da casa. 

Local minúsculo, localizado depois da área de serviço, perto do grande latão de lixo. Um paralelo muito evidente com a cela da delegacia.

“Solitária” conta a vida de Eunice e sua filha Mabel no apartamento de cobertura no Gold Place no Rio de Janeiro e as relações com os outros moradores e empregados do local. São acontecimentos de duas décadas que compreendem desde o momento em que ninguém tinha celular, portanto não havia redes sociais, até o confinamento em razão da pandemia do Covid-19.

O livro tem três partes. Tem morte, nascimento, amor, paixão, aborto… Na primeira delas, a voz que narra a história é da Mabel, filha da Eunice, que acompanha a mãe no trabalho e, quando percebe, já é empregada da casa também. De criança a adolescente. Confesso, não consegui evitar o choro em cada capítulo. 

Na segunda parte, a voz é de Eunice. Há a visão adulta sobre fatos contados pelo ponto de vista da criança. Novamente não contive o choro a cada capítulo.

A voz da terceira parte é do próprio quartinho, a solitária, onde Eunice e Mabel passaram quase vinte anos dentro.

O livro poderia ser facilmente uma novela das 21h na TV Globo. E isso não é depreciar este romance. Ao contrário, a clareza narrativa me faz pensar que histórias como essa, contada de modo acessível, se tornem a possibilidade do reencontro do cidadão com a literatura. Hoje é evidente essa separação e vejo “Solitária” como um caminho para o livro ser parte da vida fo cidadão,  assim como é a música.

“Solitária” traz a realidade negra para o protagonismo da literatura. Expõe a disparidade de oportunidades presentes nas classes sociais. Aponta o dedo para a realidade que grita do fundo da autora, Eliana Alves Cruz. Mostra ao branco, rico, o que ele não quer ver. Mostra o pensamento antagônico de quem está nas melhores posições sociais. É uma lição, didática, sobre meritocracia. Aliás, fosse eu o editor, iria sugerir que este fosse o título do romance. Uma ironia! Pensando melhor, não iriam entender. Melhor mesmo o título atual, direto, cru, sem floreios como é o texto todo do romance. 

Que outros livros tão bem narrados venham a ser escritos e das temáticas mais variadas. Que “Solitária” não seja uma exceção, mas a regra do futuro imediato da literatura brasileira.

Gostei demais de “Solitária”. Valeu a pena ler.

Comentários