Compartilhar

Embarquei num trem na cidade de Miranda no Pantanal mato-grossense à meia-noite com a previsão dele chegar em Campo Grande às 6h da manhã. E assim aconteceu. Era o ano de 1988. Seria um trecho a mais na minha primeira visita a um dos paraísos terrestres, onde vi jacaré e onça pela primeira vez, se não tivesse essa viagem se tornado uma das mais difíceis privações que já tive na vida devido ao frio. 

O trem chacolejava e o vento gelado entrava por todas as frestas. Todas as roupas, meias, toalhas que estavam em minha mochila não foram suficientes para me aquecer. Sacos plásticos e papéis também foram improvisados para aquecer pés e pescoço. Foi algo desesperador. Impossível dormir. Doía os ossos. Minha sanidade estava no limite quando o trem começou a parar, o Sol nasceu e no gramado da praça na frente da estação ferroviária de Campo Grande comecei me aquecer. Foi como se ligasse o fogo de uma frigideira. Em minutos tive que tirar tudo que me cobria tamanho o calor. Diz-se que é assim também no deserto: Frio congelante de madrugada e calor insuportável de dia.

Nunca mais tive uma experiência dessas com o frio. Em Paris, em 1999, final de outubro, fui surpreendido por ruas absolutamente vazias. Nenhuma viva alma. E saí de dentro de onde estava para entender o motivo. E ao colocar os na calçada um vento gelado entrava pelas mangas e gola de maneira que casaco algum protegesse. Era difícil ficar com os olhos abertos. Então voltei para dentro do hotel, onde a calefação permitia que se ficasse em mangas de camisa numa confortável temperatura. Bares, cafés, restaurantes… todos têm aquecimento.

Não me lembro de ter passado qualquer outra experiência com condições extremas até o começo desta semana quando fui fazer dois exames médicos, colonoscopia e endoscopia, que exigiram privação de comida por 72 horas e de líquido nas últimas cinco horas quando tomei um laxante que me fez evacuar líquido até que a última foi uma água amarelinha, tão clara, que era possível ver com nitidez o fundo do vaso sanitário. 

Tive muita fraqueza, dor nas juntas e cabeça, irritação acima do normal. Suava frio e por um momento achei que fosse desmaiar. A enfermeira me cutucou nos braços e não achava minha veia. Até que perto do desespero, ela perdeu o humor inicial do procedimento, achou uma veia em minha mão. Estou desidratado, eu disse, as veias somem. Ela concordou, mas disse que as minhas são bailarinas. Há muitas décadas ouvi essa expressão pela primeira vez como título de um livro de Inácio de Loyola Brandão, escritor brasileiro nascido em Araraquara, mesma cidade de meu amigo Carlos Magno. São veias que se mexem quando a agulha vai furá-la. Bastou um pouco de soro entrar em meu organismo e automaticamente fiquem bem, sem mal-estar algum. Em seguida, acordei uma hora depois sem me lembrar de nada que me disseram que aconteceu: um cano entrou por minha garganta abaixo num exame e uma mangueira pelo meu ânus adentro. Acordei sem dor em lugar nenhum e nem zonzeira. Ao contrário dos meus pares que passaram pelos mesmos procedimentos. Rafael, um jovem agricultor de Pilar do Sul, todo tatuado, que conheci antes do exame demorou para voltar a si. Seu acompanhante achou melhor deixá-lo um pouco deitado na calçada ao invés de dirigir com ele tão grogue.

Comentários