Mercadorias vivas

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Quando eu morei na Holanda, durante alguns meses de 1989, o mundo sofreu significativas mudanças: Queda do Muro de Berlim, a China encerrando de forma brutal o protesto em massa por liberdade e democracia na Praça da Paz Celestial, o Brasil tendo a primeira eleição direta para presidente depois de décadas de regime militar…

Todos fatos marcantes que se sobrepuseram a outros mais prosaicos, digamos assim, naquele ano, quando eu tive impactos pessoais ao conhecer alguns costumes corriqueiros entre is holandeses, mas bastante diferente entre os brasileiros. Me lembro de um joven soldado (equivalente à Polícia Militar aqui em São Paulo) com cabelos compridos e braços tatuados. Ele era o estereótipo do fora da lei, o que contradizia com sua função de agir para cumprimento dela. Algo inimaginável ainda hoje em “nossa” PM. Outro estranhamento foi a liberdade para fumar maconha. Aqui ainda tão reprimida e lá vendida em lojinha de tabaco. Aliás como ocorre atualmente nos Estados Unidos e Uruguai, por exemplo. Mas nada me chocou como as mulheres em vitrines (grande janela de casas) se expondo como mercadorias para quem quisesse as consumir. No geral, homens eram os consumidores. Não, antes que se perguntem, não “consumi” nenhuma delas. Foram choques culturais. Via mulheres e travestis nas avenidas Moraes Salles, em Campinas, e General Carneiro, em Sorocaba, por exemplo, se expondo, e carros com seus consumidores parando para catá-las. Tudo na clandestinidade. Na Holanda, na legalidade. 

Me lembro disso tudo por qual motivo?

Porque estive sábado passado na Feira do Livro de São Paulo, que acontece na praça na frente do estádio de futebol do Pacaembu, e lá uma centena de tendas abrigam as editoras que expõe seus livros. Numa das tendas haviam mesas, dessas altas, usadas em bares, e nelas um autor segurava seu livro e exibia a capa ao passante. Uma espécie de convite: Venha me consumir. 

Meu sentimento ao ver estes autores foi o mesmo que tive quando vi as mulheres nas vitrines holandesas. De total espanto. Um espanto moral por ver algo sagrado (corpo num caso e escrita no outro) sendo comercializado como se fosse algo banal. 

Fiquei constrangido, no sábado na Feira do Livro como havia ficado as mulheres nuas nas vitrines.

Não me vejo naquela barraca expondo o que escrevi. Assim como não me vejo fazendo “ações” para vender meu livro além do que é respeitoso ao livro e seu autor, ou seja, interagindo com quem gosta de livros em locais onde isso seja possível. Não caçando compradores de livro.  Um autor não escreve para ganhar dinheiro, escreve por vários outros motivos, mas não este. Vender é responsabilidade da editora, esse é o seu negócio. O do autor, é escrever, exclusivamente. Esse é um pensamento puritano, diria Danny Sugahara, uma profissional que ganha dinheiro dando cursinho para autores venderem seus livros. Certamente ela tenha razão, é ser puritano. Mas é como sou. Me constrange ver o que vi na feira sábado, não faria igual, acho que nenhum autor deveria fazer por ser desrespeito com eles próprios. Mas é direito de cada um agir como julga ser o certo.

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