Desde a bolachinha de Proust, a literatura está cheia de exemplos sobre a força de algo (sabor, cheiro, cor, sensação…), acomodado na memória de uma personagem, que surge no contato involuntário com este algo e é capaz de para transportá-lo ao instante vivido num passado que até então nem se tinha consciência de que ele havia existido.
Não preciso dizer que se está na literatura está mais que nunca na vida real. Na vida sua, na minha, na de cada ser humano. A literatura só contempla a verdade. A mentira é tão somente a farsa.
O mais intrigante que me ocorreu foi com o cheiro de um perfume. Sou totalmente inapto para descrevê-lo. Não é doce, nem cítrico, nem madeira ou floral, não é pimenta… mas é inebriante. Poderia viver sob este cheiro. Ou viver sobre o que ele me lembra. Mas também não sei o que ele me lembra. Mas era pleno. Ao senti-lo minha lembrança estava quase se concretizando e o cheiro começou a sumir e eu forçava meu nariz e corria atrás dele. Estava na calçada e o vento levou-o embora e me desconectei completamente do ambiente para o qual havia sido transportado. Me vendo jogado na dura realidade de apenas existir.
No sábado passado de manhã, numa pousada simples em Monte Verde, no aprazível sul de Minas Gerais, quando entrei no local onde estava servido o café da manhã fui tomado por uma sensação extra de bem-estar. Não só pelos aromas das delícias ali oferecidas, mas pela Bossa Nova que tocava no rádio e dominava o ambiente. Depois vieram Elis, Caetano, Clube da Esquina… Músicas conhecidas e que sustentaram minha adolescência. Me senti potente. Em paz. Absolutamente desligado desse mundo podre de taxas, chantagens, tornozeleiras e burrices. Foram instantes de confiança. De que é possível viver em paz. Algo sumido entre tantos desconfortos.
Na varanda do quintal da cozinha, sentado ao Sol, vi dezenas de espécies de pássaros comendo o mamão oferecidos a eles, como o pequeno tucano da foto. Ouvi seus piados e algazarras. Senti o calor na pele embaixo das roupas que me protegeram dos 5° graus da madrugada. E já eram quase 11h quando me levantei para arrumar a mala, pois ao meio-dia havia o check-out.
Estou à espreita do próximo sabor, cheiro, som… Esperando ser transportado novamente ao melhor de mim. Me é possível apenas me permitir um encontro comigo a partir de algo que não tenho, absolutamente, nenhum tipo de controle. Apenas o acaso pode me permitir esse encontro. Posso apenas desejar este acaso. E é isso o que tenho feito.
***
“E, de repente, a lembrança apareceu. Essa lembrança era essa madeleine. (…) A visão daquela madeleine não me lembrava nada, antes de a provar. Mas no instante em que o gosto do bolo molhado de chá tocou meu paladar, estremeci, atento ao extraordinário que se passava em mim. Um prazer delicioso me invadiu, isolado, sem a noção de sua causa. Imediatamente me tornaram indiferentes as vicissitudes da vida, seus infortúnios inofensivos, sua brevidade ilusória – da mesma forma que operam o amor, ao nos encher de uma essência preciosa; ou a morte, ao nos fazer ver tudo do alto. Sentia que o prazer vinha do chá e da madeleine, mas que o ultrapassava infinitamente, não devia se limitar à sua causa.”
Este é o famoso trecho da “madeleine” está na obra “Em busca do tempo perdido”, de Marcel Proust, mais especificamente no primeiro volume, “No Caminho de Swann” (Du côté de chez Swann), publicado em 1913.
A passagem descreve o momento em que o narrador prova uma madeleine mergulhada em chá, o que desencadeia uma poderosa memória involuntária de sua infância em Combray.