Meu corpo está dolorido em razão dos exercícios de musculação que voltei a fazer na academia depois de ter interrompido essa prática há um ano e meio. Mesmo assim fui nadar, atividade também interrompida há ano e meio, mas para a qual retornei há três semanas.
Nadar é reconfortante.
Mancando devido as dores na panturrilha, com movimento limitado dos braços, eu descia a rua lateral à academia quando vi, alguns bons passos a minha frente, um cego. Com sua bengala batendo na parede, ele caminha. Me intrigou sua tamanha destreza ao andar em razão das calçadas tão cheias de irregularidades. Ele não sentia dores, certamente, para andar tão confortavelmente.
Tive um impulso neste momento. Como todo pensamento, este impulso também é um pensamento que surge “do nada”, tem vida própria, é incontrolável. Só se sabe de sua existência quando ele se manifesta.
Este impulso foi o de me aproximar do cego e dar um berro bem próximo dele unicamente com a intenção de assustá-lo. Como ele reagiria? Com um grito? Jogaria a bengala para cima? Me atacaria? Entenderia que se tratava de traquinagem?
Que imbecil quem pensa em “aprontar” com um cego! Qual a graça e prazer de tamanha tacanhice? De onde vem ideia tão sem propósito?
Um tanto envergonhado desse despropósito ter passado por minha mente, segui minha caminhada, ainda atrás do cego. Não que eu estivesse numa perseguição, mas pela coincidência de írmos no mesmo caminho.
Me lembrei, então, do jovem de “O Estrangeiro” de Albert Camus que está na praia num dia de calor intenso e sol escaldante, sentado na areia, vendo o vai-e-vem das ondas e os corpos na areia. Ele estava de luto pela morte da mãe. Ele abre sua mochila e tira dali um revólver e sem razão alguma, sem emoção também, apenas num gesto mecânico dá um tiro no jovem a sua frente matando-o. Um jovem como ele e que ele nunca havia visto na sua vida. Não havia motivo para matá-lo e nem para lhe dar um tiro. Ele apenas faz o que é da extensão da sua mão e usa a arma.
Alcanço o cego.
Nada faço.
E sou eu quem me assusto quando o cego, um moço jovem, se dirige a mim com um vozeirão: Tem alguém aqui perto de mim? Sim, respondi. Pois não havia ninguém mais ali. Eu suava muito e não era devido ao calor, nem mesmo reflexo da atividade física que ainda mantinha acelerado meu corpo. Ele segurou meu braço e eu disse: Vamos? Ele respondeu sim, por favor, e descemos a rua juntos.
Você vai onde, perguntei, ao que ele me respondeu que seguia ao Tedo Lanches. Eu disse que não conhecia e ele, como se enxergasse, disse que era na próxima esquina à direita. Eu, surpreso, perguntei num tom que soou estranho: Como você sabe? Ele me falou: Conheço tudo por aqui. Chegamos a esquina e alertei: Cuidado com o degrau da sarjeta e ele me disse, num tom de repreensão: Eu viro aqui, não vou descer mais não.
Não lembro como nos despedimos, mas acho que foi com um valeu. Não sei quando o verbo irregular de infinitivo valer, no pretérito perfeito (valeu) se transformou em obrigado, mas assim nós falamos e nos entendemos.
Ele emanava confiança e seguiu na rua em que virou tateando a parede com sua bengala, sem saber (como ele poderia?) da ideia estúpida que passou por minha cabeça.
O protagonista de “O Estrangeiro”, não me lembro o nome e não quero procurar, é apático e nada social. Eu não posso dizer que seja assim. Ando um tanto apático, é verdade, mas nada que me classifique de antissocial. Me esforço, quando estou num ambiente público, para ser empático. Não há nada que esteja ao meu alcance compreender, momentaneamente, a ideia de fazer “piada” tão agressiva com um estranho.