Ser o que é

Compartilhar

Charlie Gordon, o primeiro filho de seus pais, está com 32 anos e nasceu com baixo nível intelectual, sendo seu QI (Quoficiente de Inteligência) de 60. Mas ele também nasceu com uma peculiaridade: Motivação. E essa peculiaridade será suficiente para transformar a sua vida.

Charlie sabe que é burro. Ou pelo menos mais burro do que as pessoas ao seu redor e quer mudar isso. 

Quando adolescente os seus pais o deixariam numa clínica para pessoas em sua condição de retardado. (Aqui abro um parênteses para lembrar ao leitor que o livro foi escrito em 1959, portanto, época em que os termos QI e retardado eram não só aceitos, mas usuais na sociedade de então) e um tio decidiu cuidar dele arranjando-lhe um emprego na Padaria Donners onde trabalhava, evitando assim o confinamento dele. Charlie se torna o melhor faxineiro e entregador da história da padaria. É cercado por seus “amigos” de trabalho (na sequência da história essas aspas serão explicadas) e conseguiu o que raras pessoas em sua condição conseguem: Ele sabe ler e escrever. 

Nós, leitores, sabemos tudo sobre Charlie por seus relatórios. Sim, Charlie é retardado, mas consegue se expressar por escrito, numa péssima gramática. Ele não sabe a pontuação, não sabe formar muitas palavras e não sabe usar as letras certas de muitas palavras, mas, mesmo assim, se faz entender. 

Charlie aprendeu isso tudo numa escola comunitária para pessoas em sua condição e se tornou o melhor aluno do local graças aquela condição peculiar com a qual nasceu: Motivação.

Isso lhe garantiu a indicação, por parte da professora Kinnian (personagem importante dessa história) para participar de um experimento científico. Até Charlie fazer parte desse experimento, os cientistas fizeram-no apenas em animais de laboratório. Um deles, um ratinho, carinhosamente chamado de Algernon, o nome que está no título do livro. Este experimento é uma cirurgia no cérebro do paciente. Essa cirurgia, mesmo após Charlie ser submetido a ela, não se sabe detalhes. Se algo foi cortado, unido, desviado de seu cérebro. 

O que se sabe é que Algernon era mais “inteligente” do que Charlie e que antes de Charlie, ele foi submetido a mesma cirurgia. E que se Charlie fazia parte do experimento por ser motivado a ficar mais inteligente, Algernon o fazia por ser recompensado por pedaços de queijo.

Então acontece o que nós leitores desejamos desde os paratextos da história: Charlie gradualmente vai ficar mais inteligente. E isso não é preciso ser dito pelo narrador ou personagens, pois a escrita “toda errada” de Charlie passa a ser feita dentro da norma culta da língua.

Charlie, que não se lembrava de nada, começou a se lembrar, em particular de episódios da infância dentro de casa ou na rua onde morava. Charlie se lembra de fatos com seus colegas de trabalho e entende que ao contrário do que ele pensava, estes não são legais com ele. 

Charlie, que não se lembrava de nada, era bom com todos a sua volta. Era como se acordasse diariamente com a mente pura. Agora ele se irrita com seus médicos, por exemplo. Ele tem sua opinião e não é mais o “cordeiro” que sempre foi. 

Agora inteligente, Charlie é promovido no trabalho para operar o misturador de farinha, uma espécie de batedeira, e faz isso melhor do que seu antecessor que se demitiu do emprego.

Um dia Charlie acorda com um vazio no peito. Algo que nunca havia sentido na vida. Neste momento seu QI está em 100, um número ainda abaixo da média do cidadão comum que gira em torno de 120. O objetivo do experimento é que o QI de Charlie alcance o patamar de 150.

Esse objetivo de longe foi superado e Charlie tem o QI de 185, patamar raro entre todos os seres humanos do Planeta. Ele já sabe ler em japonês e hindu, alemão, além de idiomas mais comuns como o francês, espanhol e até português. Ele é capaz de discutir em alto nível sobre questões da Física e Matemática. Ele enfrenta dilemas morais. Entende de Ética. 

Charlie, no olhar dos que o cercam, se tornou pernóstico. Todos veem soberba em sua fala. Todos ressentem falta daquele “homem bom” que havia naquele retardado antes de se tornar inteligente. Até seus médicos estão assustados com este novo Charlie. Um homem onde agora sobra inteligência, mas falta empatia, amor e condescendência. Charlie é um homem sem habilidade para dar ou receber afeto. Isso nos (leitores) assusta e irrita, pois Charlie, claramente, amadureceu rapidamente do ponto de vista intelectual, mas segue um imaturo adolescente em questões como a de se relacionar com o outro, particularmente com uma mulher. Sua paixão é a professora Alice Kinnian, àquela de sua iniciação na escola para retardados. Eles até tentam avançar para um relacionamento onde haveria sexo, mas Charlie tem bloqueios e se descobre que isso é fruto da sua infância onde sua mãe para proteger a irmã e amigas da não rara ereção de Charlie o punia toda vez que seu pinto se endurecia.

Charlie enfrenta esses dilemas com muito sofrimento e solidão. E nós, leitores, ficamos sabendo mais e mais de Charlie na medida em que ele sabe mais dele próprio por suas lembranças. 

Algo que nós (leitores) descobrimos é que Charlie não nasceu com a Motivação que lhe levaria a querer ser inteligente. Essa motivação é apenas consequência de sua vontade de agradar a sua mãe. Ela sim queria que ele não fosse retardado e Charlie entendia seu esforço e fez disso o propósito de sua vida. Ele queria ser aceito e amado por ela.

Também ficamos sabendo a qual procedimento cirúrgico Charlie foi submetido. Seu médico dá uma aula do tipo de incisão feita em seu cérebro e quais enzimas são estimuladas por remédios e terapia. É uma explicação crível e nós (leitores) ficamos com a tendência de acreditar que isso, de fato, seria possível no mundo real. E, não raro, nos perguntando: Se fosse possível uma cirurgia para se ficar mais inteligente valeria a pena diante da absoluta solidão que acompanhou essa evolução intelectual?

A metade final do livro é envolvente e o desfecho da história (o que aconteceu com Algernon; porquê flores para ele, do título; Charlie vai conseguir transar com Alice; ele se encontra com os pais e irmã…) caminha para charadas propostas pelo autor na voz de Charlie: “A busca por conhecimento exclui a busca por amor… Inteligência sem a habilidade de dar ou receber afeto leva a um colapso mental e moral, para a neurose, e possivelmente até para a psicose… Quando eu era retardado, tinha muitos amigos. Agora não tenho ninguém…” (página 230).

É uma jornada na estória de vida de Charlie, mas “Flores para Algernon” é um caminho para dentro de si (leitor). E, como tal, de agonia.

PS – Este livro foi lido como parte das tarefas da Faculdade de Letras, presencial, do Instituto Federal de Educação, campus Sorocaba-SP.

Comentários