A dona da banca de pastel, que é casada com um japonês, tinha sua resposta na ponta da língua e não titubeou em dizer o que pensava ao dono da banca de garapa do outro lado da rua, um russo: Volte pra sua terra…
A raiva da pasteleira surgiu quando ela entendeu o que o russo disse após o filho dele, de 10 anos, ter traduzido. Meu pai disse que as escolas do Brasil não ensinam nem o português, são uma porcaria.
O cara veio se equilibrar numa corda num circo aqui e vem falar o que está errado. Então volte pra sua guerra…gritou a pasteleira. Aqui ela não disse terra, disse guerra mesmo.
O vendedor de garapa não entendeu nada. E apenas sorriu…
Fico pensando na raiva da pasteleira.
Seu sentimento é o mesmo de uma mãe quando alguém lhe diz que o filho é burro. É um misto de inconformismo, insulto, ultraje…
Fico pensando também que quando estamos envolvidos numa determinada situação nos falta o distanciamento necessário para ver a verdadeira realidade na qual estamos envolvidos. É como se puséssemos um objeto tão perto dos olhos que não conseguíssemos identificar o objeto em questão. É preciso afastá-lo 20, 30, 40 centímetros para então termos a exata noção do que se trata.
Penso que o russo está certo quando critica nossa escola. Ele nos afasta com sua fala e nos força ao distanciamento para ver a realidade: A escola pública perdeu a capacidade de educar para a tradição da língua portuguesa, no sentido coloquial, promovendo a preservação de sua essência que é a representação do pensamento em textos escritos com palavras. É corriqueiro ver a incapacidade de interpretação de texto… A tolerância com os erros de ortografia, com a falta de pontuação e concordância verbal, de gênero e tempo corrompem o idioma. Portanto, corrompem o pensamento!
A tolerância com esse desvirtuamento da língua é similar à tolerância com qualquer outro tipo de corrupção.
Quantas pessoas não externam sua indignação com a corrupção, mas a praticam em pequenos delitos cotidianamente!
O russo, que veio se equilibrar na corda de picadeiro e hoje se equilibra na engrenagem que tira o caldo da cana, que entende um pouco e fala muito mal o português, que fuma durante o trabalho, que está longe de ser simpático, disse o óbvio: A escola pública no Brasil vai mal…
É preciso que seja retomado o compromisso com a língua portuguesa. Com os livros. E com a literatura…
Do contrário, seguiremos sem olhar para dentro de nós mesmos, seguiremos sem capacidade de entender o que pensamos e o motivo de estarmos envolvidos com tal pensamento. Seguiremos reféns do que nos apareceu ou aconteceu mesmo não sendo o que desejamos pelo simples fato de sermos incapazes de saber o que somos, queremos e desejamos.
Não é possível mais tolerância alguma com um ensino ruim do português. É preciso aprender o quanto imbecil são frases publicadas aleatoriamente nas redes sociais como se fossem sabedoria… O quanto cafajestes são as pessoas que publicam citações e não dizem nada sobre o que pensam como se tudo já tivesse sido pensado e não houvesse mais o que dizer… O quanto é idiota, cretino e vergonhoso o argumento das pessoas que estão na frente dos quartéis, para citar um exemplo prático e de nossos dias. O russo garapeiro e equilibrista está certo por mais que isso doa na pasteleira, em mim ou em você.