Quando minha mulher me contou que pastores evangélicos de cidades em 21 estados brasileiros estão processando o escritor João Paulo Cuenca (filho de mãe brasileira e pai argentino) por uma postagem que ele fez em uma rede social em junho, parafraseando um autor do século 18 – leia abaixo a frase original e a dita agora, século 21 – me lembrei quando eu tive, pela primeira vez na vida, essa percepção da paranoia religiosa que apenas cresce.
Eu devia ter uns 10 anos, acho. A vida na rua Moreira Cabral na Vila Santana era reservada a poucas emoções. Os homens trabalhavam na ferrovia, indústria ou comércio e as mulheres eram do lar. Os filhos iam para a escola, brincavam na rua e iam para a igreja, não apenas para a missa, mas para o catecismo, crisma, estudo da Bíblia… As mulheres se combinavam e subiam juntas para a Igreja de Santa Rita.
No meio delas tinha a Alice, vizinha da Landinha uma moça com problemas mentais que vivia com um camisolão cor de rosa, nunca saia de casa e vivia trancafiada com a sua mãe. Nunca soube do pai dela. O universo da mãe era a Landinha (muito de vez em quando aparecia uma visita familiar) e o da Landinha, a mãe. E a Alice, vizinha de parede, sempre dava um socorro nas coisinhas do dia a dia.
A Alice era bem mais moça dos que as mulheres da rua, mas bem mais velha do que as filhas dessas mulheres. Ela devia estar na faixa dos 40 anos e cuidava do pai, já que a mãe tinha morrido. Alice era deslocada. Ela não tinha idade para se comportar como as mães, todas na faixa dos 50 para os 55 anos, e nem das filhas, na faixa dos 25 a 30 anos no máximo. Ela era a dona de casa, não tinha marido e nem filhos. A típica solteirona. Até que a “felicidade” bateu em sua porta e ela se casou com o Édson, tapeceiro. Foi uma surpresa para todo mundo, muito falatório e o que todos diziam aconteceu, o Édson trabalhava um dia, bebia em outros cinco e se recuperava no sexto dia para ir trabalhar mais um pouco.
A tristeza bateu forte em Alice. Mas, como de repente, a Alice começou a estar risonha, falante e exibindo uma felicidade que passou a incomodar as outras mulheres da rua. Não demorou para que se descobrisse que ela estava indo numa igreja nova, a Universal do Reino de Deus.
Foi a desgraça da Alice. Muito maior do que a do marido que bebia. As mulheres passaram a visitar Alice para tirar da sua cabeça essa coisa de ir numa igreja que não fosse a católica. Era coisa ruim o que ela fazia. E aos poucos, Alice se viu ignorada. Quando ela passava, as mulheres da rua fechavam a janela. Ninguém mais falava com ela. Alice sentiu o desprezo das católicas, assustadas com a chegada de uma igreja.
Voltando ao Cuenca…
A manifestação do escritor, que deu origem a 134 ações judiciais e somam quase R$ 2,3 milhões em pedidos de indenizações contra ele, 40 anos depois, apenas confirma o temor das mulheres católicas da Vila Santana pela Alice ter se desgarrado do rebanho da Santa Rita.
“O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”, dizia o texto publicado por Cuenca. É uma paráfrase de Jean Meslier, autor do século 18, cuja versão original afirma que “o homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”.
Cuenca apenas evoca a sua opinião, a mesma das mulheres católicas de 1977 na Vila Santana, de que os dogmas da Igreja Universal fazem mal à sociedade. Evidentemente que Cuenca não quer a morte de ninguém, ao menos a física. É um embate sobre o comportamento de manada das pessoas que deixaram de pensar, refletir, se informar e confiam o destino de suas vidas ao que pastores lhe prometem.
Os pastores foram à Justiça e o que ela decidir selará, de um modo bastante claro, o sentido de liberdade de expressão pelo qual vivemos. As mulheres católicas da Vila Santana não queriam que as Alices que começaram a frequentar a Igreja Universal seguissem a sua escolha, mas apenas isso. As Alices seguiram e a Universal se tornou a potência que é. Que a Justiça permita que os que pensam diferentes dos pastores possam seguir externando o que hoje ainda é um direito. Essa perseguição judicial a Cuenca já lhe causou sérios problemas e a condenação apenas vai piorar a questão pessoal dele, mas certamente a do sentido de liberdade em nossa sociedade.