As nossas cores

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Hora do almoço e o movimento na livraria é quase nenhum. Para ser exato, é de um. O meu. O único freguês. 

São três vendedoras. Todas brancas. Uma jovem perto dos 30 anos, que pinta o cabelo todo enroladinho de vermelho, toma conta da seção de brinquedos, uma das mais lucrativas da loja. Outra jovem, que ainda não fez 20 anos, cheia de tatuagem nos braços, mãos, dedos, pescoço (partes do seu corpo não escondidas pela roupa), cabelo preto liso, curtinho, tipo Betty Boop, toma conta do café, seção tão ou mais lucrativa que a de brinquedos. Uma outra mulher, nem tão jovem, entre 45 e 50 anos, cabelos lisos grisalhos quase brancos, sem pintura, toma conta dos livros e do caixa.

Eu estou esparramado no sofá. Tomei um expresso e respondo mensagens de WhatsApp. Daqui a pouco tenho que ir. As duas começa a minha tarde. Minha cabeça lateja um pouco. Penso que é por causa do tempo. A umidade do ar está criminosa, abaixo de 30%. Meu nariz está seco.

Sou despertado num susto com a voz de uma jovem me dizendo: Você pode sair daí que preciso varrer… Ela arrasta as poltronas ao redor e passa sua vassoura com energia no tapete. Sai sujeira que não sabia existir ali. Eu demoro mais do que a faxineira esperava e ela para e me olha como se me dissesse: Vamos, está demorando. 

Me mudo para onde estão as mesinhas e não consigo deixar de perceber que a funcionária mais velha chama a atenção da faxineira, apesar de falar baixo. Acho que escuto ela lhe dizendo: Você não pode falar assim… E a faxineira retrucou, num tom alto, audível em toda loja: Mas ele estava atrapalhando. A funcionária, perdendo a paciência, agora falando num tom normal: Um freguês nunca atrapalha e você precisa entender como isso aqui funciona se quiser continuar fazendo seu trabalho. A faxineira, então, resignada, abaixou a cabeça e não olhava mais para a “chefe” e não falava mais nada. Só se mexeu quando ouviu a ordem: Agora pode ir.

Voltei a me esparramar no sofá pensando que nossas cores, de nós cinco reunidos ali naquele momento na livraria, indicam as nossas histórias, individualidades e condições. 

Por mais que na novela o “mocinho” e a “princesa” sejam pretos, na vida real a posição dos afrodescendentes ainda é a de ser subalterna. Aquela que cabe estar cabisbaixa, sem voz, repetindo as condições de sua família. A educação ainda não abalou as estruturas. A política ainda é insuficiente.

A ilustração deste texto é a obra “Operários” da modernista Tarsila do Amaral.

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