Cheiro de terra molhada

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Quando Marcel Proust viajou no tempo ao experimentar a bolachinha madeleine no livro No Caminho de Swann, o primeiro dos setes volumes de Em Busca do Tempo Perdido, ele viaja a um mundo que já foi seu. 

É uma imensidão.

“(…) a mãe de Marcel lhe oferece chá e madeleines num dia frio de inverno. Quando ele sente as migalhas e a bebida quente no céu da boca, estremece, com uma sensação de prazer que lhe é familiar. Essa sensação o fará mergulhar em velhas lembranças, ligadas ao sabor do bolo e do chá. Ei-lo de volta a Combray, num domingo de manhã, quando a tia Léonie lhe oferecia uma infusão de flor de tília. A felicidade da infância ressurge (…)”

Sempre entendi como sendo um momento, um recorte de um tempo, o despertar que o sabor, o cheiro e a textura causaram ao personagem. E talvez seguisse com essa certeza por toda a vida. Mas o acaso mudou isso.

Estava na tarde desta terça-feira descendo a avenida General Carneiro, lutando contra o trânsito, calor e tempo seco, abri a janela para atender ao vendedor de balas de ovo e não mais liguei o ar condicionado. Então, perto da UPH Zona Oeste, fui tomado pelo cheiro da terra molhada proveniente de um caminhão pipa, no sentido contrário de trânsito, regando os coqueiros do canteiro central. 

Num é um momento, mas a eternidade que vive em mim que aflorou com uma vivacidade que fui capaz de viver novamente a infância da Vila Santana. 

Um menino se deliciando no chuveirão traseiro do caminhão que lavava a rua Balthazar Fernandes depois da feira de sábado.  Um menino de pés no chão, sola cascuda, perseguindo a bola de capotão. Um menino sentado na sarjeta ouvindo histórias e se surpreendendo com o mágico poder de uma narrativa em nos dar medo, prazer e vontade de se mexer.

A eternidade do mundo cabe num instante. 

O filme “Tudo Em Todo Lugar e ao Mesmo Tempo”, que duvido que seja exibido nos cinemas locais, é um exemplo da capacidade de criadores em contar esse fenômeno de reviver tudo ao mesmo tempo no agora. É um filme cheio de referências da cultura pop dos séculos 20 e 21, que não faz referências à Proust, ao menos não explicitamente, mas usa do mesmo recurso. É um bom entretenimento. Não chega perto do que é Em Busca do Tempo Perdido e muito menos do que é viver, como tive o prazer de ter revivido, a eternidade que carregamos em nós. Mas nos mostra a possibilidade desta sensação tão indescritível e só por isso vale a pena ser visto. Em 2012 a neurociência se debruçou sobre esse fenômeno para explicar a riqueza do cérebro humano. E descobriu sua lógica. Basta uma googlada para chegar a esse estudo. A mim, basta o prazer dessa experiência!

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