Dona Martha bateu seu carro na traseira do meu

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Eu sou contrário às generalizações, mas uma delas me parece certa: todas as pessoas, indistintamente, são contraditórias de alguma maneira.

Para explicar o que estou dizendo: Conheço médico muito mais apegado a Deus do que à Ciência e padre muito mais apegado à Ciência do que a Deus.

Eu, por exemplo, sou praticante do seguinte mantra: viver é incontrolável, imprevisível e acidental. Mesmo assim, se tem algo que me irrita é alguém derrubar um copo, um talher, um utensílio qualquer. Ou seja, um acidente.

Minha sogra, desde sempre, derruba tudo. E, talvez isso seja genético, minha mulher também é adepta dessa prática. Quando isso acontece elas nem olham pra mim, pois é acontecer e eu estar de cara virada, externando estar desacorsoado com tal ocorrência. Minha mulher diz que isso é resultado da opressão que sofri da minha mãe e apenas isso explica esse meu comportamento tão chato. Vai saber… Pode ser que ela tenha mesmo razão.

Agora, imaginem como estou me sentindo hoje. 

Saí de um reunião tensa, de trabalho. Peguei o carro. Segui, dentro do que manda o Código Brasileiro de Trânsito, pela avenida comendador Pereira Inácio e parei, pois é uma pista de acesso e, portanto, de desaceleração, para entrar na avenida Dom Aguirre. É um local bem sinalizado. No chão está pintado “Pare”. Há placas no alto. Fiz tudo certinho. Mas a dona Martha – e descobri o seu nome apenas quando ela me deu o seu cartão pessoal – seguiu acelerando e parou apenas quando bateu o seu carro na traseira do meu. Saí e antes que eu dissesse qualquer coisa ela me pediu desculpas, disse que não sabia o que tinha acontecido, abriu a bolsa, tirou o seu cartão, escreveu um número de celular, disse que tinha seguro e ia pagar o conserto do meu carro… Minha reação foi voltar ao meu carro, abrir a porta do passageiro e pegar a máscara que havia deixado sobre o banco e colocar na cara. Em tempos de Pandemia, já estou condicionado.

Eu não disse uma palavra. Nada. Fiquei surpreendentemente…mudo.

Nós fomos embora. Espero que o seguro resolva, de fato, o prejuízo material do carro.

Estou pensando porque fiquei de boca fechada. Certamente porque teria perdido toda a razão que eu tinha, de ter sido vítima da imprudência da dona Martha. A primeira palavra que teria saído de minha boca, certamente, teria sido: buuurrraaaa.

Racionalmente eu sei que ela não é burra, assim como não são minha sogra, mulher e todas as pessoas que derrubam copo, caneta, papel e qualquer coisa que lhe passem pelas mãos. Mas, como sou essa equação de razão, emoção, espírito, alma, cultura, natureza, complicada, cujo o resultado é nada científico e completamente imprevisível pois é um a cada nova situação, adotei este método de fechar a boca. Não entra mosquito. O fato é que isso não impede, infelizmente, de engolir o sapo. Que incontrolavelmente nasce pequenininho, de modo imprevisível, mesmo que você faça tudo direitinho. Como eu fiz hoje e apareceu a dona Martha… 

Pensando bem, não sei se foi culpa dela. Como faço toda manhã, assim que saio da cama, hoje também peguei a caixa dos meus remédios e tirei da embalagem os dois comprimidos que tomo diariamente. Coloquei um do lado do outro. Abri a garrafa de água. Peguei os comprimidos e quando fui colocá-los na boca um caiu no chão. Levantei-o e tomei. Quando fui fechar a garrafa, caiu a tampa. Nunca tinha acontecido. Praguejei. 

Só agora, aqui com meus botões, estou pensando se essas quedas (do comprimido e da tampa) não eram avisos celestiais de que eu iria cruzar com a dona Martha naquele acesso. “Com certeza” eram! Mas quem manda eu ser burro, tão racional, e não dar ouvidos às mensagens divinas!

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