Numa troca de mensagens por whatsapp na noite de terça-feira, recebi a banal pergunta: E você, está bem?
A resposta óbvia e protocolar é: Sim tudo bem… nenhum familiar ou amigo é um dos 450 mil brasileiros mortos pela Covid. Não entrei na linha da miséria, como 14 milhões de pessoas. Estou com saúde… Então, sim. Está tudo bem.
Mas a resposta “certa” é: não, como posso estar bem num ambiente desses, onde os brasileiros seguem morrendo e a vacinação contra a Covid desacelerou por falta de insumos?
É uma obscenidade estar bem hoje em dia. É uma ofensa a quem perdeu um amigo ou familiar.
E lembro que obscenidade vem de obsceno, definido como crime no Artigo 233 do Código Penal Brasileiro: crime contra a norma social, a modéstia, a decência, o pudor, o decoro, a lei natural e a ordem pública. O crime consiste na prática de obscenidade em lugar público, ou aberto ou exposto ao público.
Por isso o jornal inglês The Guardian acertou em cheio quando classificou o passeio de moto do presidente Jair e seus súditos no último domingo de obsceno. A norma hoje é a mesma do ano passado: evitar aglomeração.
Levar a sua vida como se tudo estivesse bem, porque para você está bem, é obsceno na medida em que revela a sua falta de empatia, o maior e principal problema do atual governo no meu entender, pois tudo o que sucede nesta administração vem da falta de sentir o que o outro sente.
Por isso, peço: Saia do automático. Externar positividade é falso Esse ato nasceu das interpretações que se deram a partir do que foi classificado de inteligência emocional. Eu sei que existe uma pressão para você ser otimista e ninguém mais se lembra de onde vem essa pressão, mas deixo um lembrete a você: vem do estilo de vida imposto culturalmente a nós. Vem do American Way of Life, a expressão aplicada a um estilo de vida que funcionaria como referência de autoimagem para os habitantes de sucesso dos Estados Unidos da América e que nós, brasileiros consumidores daquela cultura nos filmes, música, uso de expressões em inglês, viagens… nos vemos derretidos e submersos dentro dessa visão de mundo.
Não estou pregando pessimismo, desânimo, derrota. Estou alertando para a necessidade de sermos verdadeiros com nossos sentimentos. Por exemplo, hoje, no açougue, fiquei feliz ao ver que o açougueiro, quando anotava uma encomenda para mim, escreveu corretamente a palavra músculo. Inclusive com o acento. Só quem foi à escola sabe o que significa o acento numa palavra. Fiquei feliz por ver que ele sabia escrever. Porém, ao sair do açougue, na calçada, uma mãe, no máximo 25 anos, toda suja e mal-vestida, mas ainda assim bonita, olhava sua filha de 3 anos e outra de 6 anos, no máximo, trazerem de dentro da garagem de uma casa no Jardim São Paulo alguns pedaços de papelão que, imagino, ela vá vender para a reciclagem. Algo distraiu a menina mais velha e a mãe com muita energia, de quem lidera um trabalho, foi imperativa: Anda Júlia!
Mais uma criança trabalhando, com a infância roubada. É obsceno sentir-se bem enquanto essa realidade for a nossa.
Em casa, agraciado pela presença de minha neta, cheia de energia, tagarela, agasalhada, cercada de brinquedos e olhares aquecidos, não deixei de lembrar do quanto sou privilegiado. Do quanto estou bem.
Paradoxal!
Só sei que preciso de pequenas metas, pequenos passos, para que eles me encham de energia e entusiasmo e eu seja capaz de contagiar quem está próximo a não desistir. Muitas vezes, apenas um sorriso basta para que isso aconteça. Apesar de você, como diz a música, amanhã será outro dia. Um dia que muda o tempo e um tempo novo se inicia.
FOTO: A imagem que ilustra essa publicação é de @CrisVector