Meu pai, nascido em Tietê no dia 2 de dezembro de 1925, filho do seu pai que nasceu em Pojana Maggiore, em Vicenza, na Itália, e de sua mãe, minha nonna, também filha de imigrantes italianos, mas nunca soubemos de qual localidade, faria 100 anos de idade hoje e, muito provavelmente, não haveria festa alguma, nem mesmo um bolo, pois nos 75 anos de sua vida nunca houve uma festinha de aniversário para ele, bom, nunca houve nos anos que convivi com ele, então porque haveria de ter nos 100 anos? Pelo fato de ser 100 anos. Não acredito.
Ele aceitou duas festas em sua vida desde que eu, seu filho caçula, nasceu. A primeira em 1975, quando eu tinha 8 anos, e ele e minha mãe celebraram as Bodas de Prata por 25 anos de matrimônio (foto), e no dia seguinte ao da festa familiar ocorrida em nossa própria casa eu levei na casa de cada vizinho um pedaço de bolo, pois as coisas eram assim naquela época, os vizinhos eram quase-parentes, e a outra festa foi em 2000, quando eu tinha 33 anos, e ele e minha mãe celebram Bodas de Ouro pelos 50 anos de casamento e não houve festa pois ele morreu assim que acabou a missa dessa celebração.
Meu pai nunca gostou de festa, bom, o meu pai, o que conheci, e descobri, com os anos, que não era o mesmo pai que foi para os meus irmãos, especialmente os meus irmãos mais velhos que têm 16, 15 a mais do que eu e conviveram com um homem jovem, época em que as emoções e os hormônios fazem uma baita diferença. Um pai com muitos “nãos” e “muitas” certezas.
Meu pai tinha 42 anos em 1967, ano em que eu nasci, quando quem tinha mais de 35 já era considerado velho. Meu pai, nessa época, já estava cansado de muita coisa e, certamente, uma delas era ter de cuidar de mais um bebê, não que ele tivesse cuidado de algum, pois essa era, ainda hoje é, imagine nos anos 60, “obrigação” da mãe.
Raramente eu e meu pai nos falávamos até que quando me tornei adulto, quando eu já era casado e tinha filhos, eu voltava à casa dele e minha mãe com bastante frequência, fosse aos domingos ou algum dia de semana e então algum assunto sempre saia, pois eu o enchia de perguntas. No almoço, quando eu era criança e chegava da escola, ele estava na poltrona vendo o programa de esportes ou dormindo sentado. À noite ele via faroeste (ele pronunciava far veste) na TV e eu já ia pra cama. Ele não foi na missa da minha 1° comunhão e nem nas minhas formaturas do parquinho, quando eu tinha 5 ou 6 anos, nem de 8° série quando eu tinha 14 anos. Nem na formatura do Senai, quando eu tinha 16 anos, e nem da faculdade quando eu tinha 21 anos, embora nessa formatura nem mesmo eu tenha ido. Ele nunca me viu jogando uma partida de futebol com a camisa do Estrada, nem o jogo em que entrei de centroavante no 2° tempo e fiz 2 gols.
Mas ele foi em casa, de surpresa, quando aos 22 anos eu tive um colapso nervoso e fiquei com as duas mãos duras, voltadas para dentro. Foi a primeira vez, pelo que lembro, que ele se interessou por mim e o fez de modo bem direto e acolhedor: O que é que está acontecendo, rapaz? Me fez tão bem seu interesse por mim que me lembro de ter “sarado na hora”, pois ele me fez sentir que eu não estava só independentemente do que poderia acontecer e isso é reconfortante demais para um filho. Para mim foi.
Outra vez que ele me surpreendeu foi quando contou que enterrou em Presidente Epitácio um dos seus irmãos. Eu nunca, até então, soube que tive aquele tio. Ele também enterrou outro irmão, o Olivio, deste me lembro apenas do nome.
Meu pai adorava as irmãs dele, acho que eram seis. Ou cinco? Tinha orgulho delas e ficava com a alegria estampada no rosto quando elas vinham em casa. Pensando em quanto eu sinto sua falta, nesta véspera de seu nascimento de 100 anos, só consigo me lembrar de seu semblante sisudo quando estava em casa. Eu não conseguia achar que não era por culpa minha. E ele não fazia esforço algum para externar o contrário. Fico pensando que sou diferente dele, mas não tenho certeza. Acontece muita coisa na minha cabeça que acabo não enunciando o que significa que não existe. Só a palavra tem o poder de dar existência material e real a qualquer coisa. Sem enunciado o outro não acessa dentro de nós. Meu pai foi um homem de poucos, diria pouquíssimos, enunciados. Mas em seu silêncio havia um universo em sua cabeça que apenas minha mãe conseguia penetrar e ajudava ele a espantar seus fantasmas.
Eu queria ter achado uma foto para esta postagem onde aparece ele, usando seu boné, eu e minha filha mais velha que devia ter 3 ou 4 anos na época, num domingo à tarde, na arquibancada do campo do Estrada onde fomos ver um jogo qualquer. Mas não achei. Também não achei uma onde está ele e meus irmãos num almoço de domingo. São imagens vivas em mim, momentos que nunca deixam de pulsar e dos quais lembro com nitidez como se tivesse ocorrido ontem. A imagem do meu pai é viva em mim. Não aconteceu com ele como ocorreu com outras pessoas que foram ficando embaçadas até sumirem da memória. Seus cheiros, como o de carne crua ou do pós-barba, também me acompanham. Assim seja para todo o sempre. Sou grato por ter tido o pai que tive e ele não ter sido um pai como foi o de Franz Kafka (leiam Carta ao Pai) ou de Isabela Figueiredo (autora portuguesa) que tiveram um acerto de contas com seus pais nas obras que escreveram.
Ao seu modo, fosse lendo jornal ou a Bíblia (o único livro que vi nas mãos do meu pai) ele foi forte influência no gosto por ler e escrever que é parte de quem eu sou. Assim gosto de pensar.
Feliz aniversário, pai!


