Um carro na faixa da esquerda trafega numa velocidade muito abaixo da indicada provocando a lentidão do fluxo, uma fila de veículos com motoristas impacientes.
A condução deste carro é de uma mulher. Ela parecia ser jovem, faixa etária dos 30 anos, mas aparenta ter o dobro disso pelo coque em seu cabelo, roupas escuras e fechadas até o pescoço, ausência de maquiagem, alguma penugem no buço. Pele branca.
No carro logo atrás do dela, um homem que parecia e aparenta ter 50 anos, talvez menos está mais do que impaciente. Está enraivecido com a lentidão do carro da frente. Sua pele, preta.
A mulher não sabe exatamente para onde ir. São duas opções: Seguir em frente na via onde está, na faixa da esquerda, ou virar à esquerda mudando seu caminho. Para se decidir olha para o celular que segura na mão direita. Dirigir e, simultaneamente, olhar o celular faz com que ela esteja tão lenta.
O homem do carro detrás tinha a intenção de sair daquela posição e conseguiu fechando um carro que vinha pela faixa central.
Mas esse homem não queria só isso. Ele quer desabafar. E na faixa central ele parelha seu carro com o da mulher. E, surpreendentemente, ao menos para mim, ele diz à mulher: É proibido mexer no celular enquanto dirige… sua va-ga-bunnnn-daaaaa.
Pude ver o constrangimento na cara da mulher. Ela ficou com os olhos cheio de lágrimas. Um misto de vergonha e desamparo.
Pude ver a cara do homem que acelerou. Raiva. Ele exalava raiva, ódio.
Pude ver e ouvir pedestres que viram o xingamento reagindo ao homem. Alguns apenas gritaram vogais tipo óóóó… Outros mandaram o homem à merda e lembraram da mãe dele. Um outro externou seu racismo dizendo que só podia ser um macaco pra xingar a mulher.
Uma cena que durou segundos.
Tempo mais que suficiente para eu captar o momento de infelicidade daquelas pessoas. Da cidade.
Vi o egoísmo da mulher, pois realmente ela atrapalhava o trânsito com sua inabilidade; vi a agressividade do homem, tão chocante para mim, pela forma como ele xingou a mulher e o uso da palavra vagabunda que é a pior ofensa que alguém pode fazer a outro; vi o racismo enraigado naquele pedestre e ao ver isso vi a cultura na qual ele foi criado.
O que se passa conosco?, me pergunto. Há uma clara desconexão entre nós, penso.
Eu me sinto deslocado, é um sentir-se desconectado. Ver o mundo a minha frente, como os outros vivem, são, é arrasador.
Fui embora triste. Uma tristeza que grudou em mim. Me vejo querendo respostas da motorista mulher, do homem que a xingou e do pedestre racista. Não consigo nenhuma. A tristeza só aumenta.