A operação “Todos contra a Covid” da Prefeitura de Sorocaba fechou um bar no bairro de Santa Rosália e um prostíbulo na região do Caguaçu depois que os vizinhos delataram o funcionamento dos locais, o que contraria o decreto municipal de isolamento social em razão da pandemia de Coronavírus.
Não vou entrar no mérito do “bem” que os delatores proporcionaram com o fechamento desses dois estabelecimentos, mas me concentrarei na delação em si, algo que sempre me incomodou demasiadamente.
Dedurar é algo que eu vínculo com a ditadura militar. A jornalista Hildegard Angel, que viu seu irmão sumir, relata que nos anos de chumbo, no Brasil, “(…)dedurava-se, delatava-se, caluniava-se a três por dois, qualquer desafeto que atravessasse o caminho. O marido ciumento entregava como ‘subversivo’ o vizinho, de quem desconfiava estar cortejando sua mulher. Sei de um caso em que o vizinho foi levado para averiguação e nunca retornou (…)”.
Delatar, um termo mais recentemente incorporado no léxico popular, é algo que vínculo com os anos mais recentes do Brasil. Primeiramente com a lava-jato que teve olhos apenas, pelo que os fatos apontam, para os crimes dos petistas, fazendo vistas grossas no passado, ao menos, aos tucanos que manipularam milhões e milhões do dinheiro público. Agora chegou a vez de Queiróz, o amigo do presidente, que disse não ter vontade de delatar nada sobre o nº 0 para, em seguida, dizer que não tem o que delatar sobre os acertos financeiros que faziam na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. O advogado, dono da casa de Atibaia, por sua vez, já deu indícios de que vê a delação como um caminho possível. O ex-elogiado ministro da economia, Palocci, delatou o ex-presidente Lula como o chefe dos chefes num esquema de corrupção para ver amenizada, ou excluída,qualquer culpa sua em crimes investigados.
O ex-secretário de Comunicação da Prefeitura de Sorocaba, ao decidir delatar o seu ex-chefe, o então prefeito Crespo, acelerou o processo que culminou com a cassação do mandato do chefe do executivo pela segunda vez. Não se sabe, passados quase dois anos, o que ele ganhou com sua delação.
Me pergunto: mas por que dedurar me incomoda tanto? Seguramente a resposta passa pela minha formação Católica Romana. Nunca aceitei que Judas tenha traído Jesus Cristo.
Me lembro do livro “Divina Comédia” de Dante Alighieri. Há dois anos, fui presenteado com um exemplar, escrito em italiano, pelo amigo Chico Jarbas em sua volta da Itália. Leitura dificílima no original. Ainda bem que existe tradução. “Inferno” é a primeira parte do livro, sendo as outras duas o “Purgatório” e o “Paraíso”. A viagem de Dante é uma alegoria através do conceito medieval de “Inferno”, guiada pelo poeta romano Virgílio. No poema, o inferno é descrito com nove círculos de sofrimento localizados dentro da Terra.
O ato de trair, dedurar, delatar está na esfera mais funda do inferno, a “Esfera da Judeca, onde estão aqueles que, em vida, traíram seus mestres e reis. Eles sofrem intensamente por estarem submersos totalmente no gelo do Cócito, conscientes, para a eternidade; segundo Dante, alguns estão deitados, outros encolhidos e outros de cabeça para baixo. Aqui reside Lúcifer, também preso no gelo até o meio do peito, peludo, com enormes asas que possuem membranas como a dos morcegos no lugar de penas, provoca um vento sentido por toda a esfera, ele tem três cabeças e com cada uma delas, morde um dos três maiores traidores da história: Judas, Brutus e Cassius. O nome vem de Judas, o traidor de Jesus Cristo. É descrita no Canto 34, finalizando o Inferno”.
FOTO: Dante e Virgílio no Inferno, por Bouguereau, no Museu de Orsay.