Homem-carro

Compartilhar

A concentração de veículos pela manhã nas ruas, no intervalo entre 6h e 7h30, é o sintoma mais evidente de quem somos.

São milhares de carros com apenas uma pessoa dentro. Não há rua para tantos, então o tráfego fica congestionado. E não flui.

A pessoa que está conduzindo o veículo, então, fica irritada. Começa a lutar para não chegar atrasada ao trabalho, onde vai passar 9h, 10 horas, dependendo do tempo que tire para o almoço. É uma luta consigo, primeiramente. Olha para o relógio e para o tráfego parado, quase parado. Parado de novo. E pensa no anda e pára: Vai dar tempo.

Então, o carro da frente resolve parar na faixa para algum isolado pedestre passar. E o tráfego lento pára. E os motoristas que estão atrás começam uma sinfonia de buzinas. E fechados em seus carros, porque não se abre a janela com frio (nem no calor, quando se liga o ar), começam a desferir palavrões que apenas eles ouvem. Não serve pra nada, nem para acalmá-los.

Um motoqueiro passa em alta velocidade, acelerando entre os carros parados que estão esperando o pedestre passar na faixa, e não atropela o pedestre porque ele é jovem, e parou no susto, e por um triz não foi abarroado. O motoqueiro, sem deixar de acelerar, levanta um dos braços e o chacoalha. Se falou algo, ninguém ouviu por causa do seu capacete.

O fluxo de trânsito volta a fluir, lentamente. Outro motoqueiro, acelerando ainda mais do que o outro, acerta o espelho retrovisor de uma SUV. Não cai da moto, só cambaleia. Segue acelerando. Ergue um braço e chacoalha. O motorista da SUV fica ainda mais nervoso. Estica o pescoço e é possível ver ele praguejando o motoqueiro. Não há o que fazer. 

É possível que o motorista tenha desejado que o motoqueiro se espatife à frente. 

É possível que quase ao mesmo tempo que pragueja o motoqueiro esse motorista tenha se arrependido porque “é pecado” desejar o mal do outro. Então o motorista que já estava nervoso com o trânsito e com o seu retrovisor também se sente culpado por ter desejado que o motoqueiro se espatifasse.

Chega ao trabalho. Aos poucos vai se acalmando. Não chegou atrasado. Um colega comenta da revolta da torcida no jogo, atirando sinalizadores de fogo no campo; outro das pessoas morrendo no submarino que levava ricos passear vendo destroços do Titanic; do aniversário do filho; do carro que está pensando em comprar para a filha… Mais um carro nas ruas!

De volta pra casa, nova angústia no trânsito, dentro do seu carro, a extensão de si. Onde nem imagina dar carona para um só colega afim de tirar metade dos carros das ruas.

… Nos tornamos a relação com os nossos carros. A hora do dia que andamos em nossos carros nos define. O carro dá a aparência de quem somos.

Comentários