Invenção da memória 

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Se tem uma decisão que o ambiente influencia na vida de uma criança essa é a escolha do time de futebol que ela vai torcer para sua vida toda. 

Bom, “pra vida toda” foi assim por muito tempo. Não é mais. Virar casaca, ou seja, torcer por um time e de repente passar a torcer para outro está muito comum ultimamente, situação que diz muito sobre a mudança de nossa sociedade.

Outra mudança é sobre de quem é a responsabilidade, na família, de passar ao novo filho o time que ele vai torcer. Sempre foi um atributo paterno e o gosto  pelo futebol uma característica essencialmente masculina. Futebol não era coisa de mulher. Mas isso começou a mudar nos anos 80 e se consolidou no século 21. Hoje até narrar um jogo mulher narra. 

Um filho pode torcer pelo time A por influencia do pai ou pelo B, pela da mãe. E mudar para o C, por tios, amigos, mídia… E tudo bem. Virar casaca deixou de ser falha de caráter. 

Eu, nascido no final dos anos 60 e crescido nos 70, nasci palmeirense. Era fácil torcer para o Palmeiras. Meu pai e irmãos torciam e a Academia brilhava em campo com Leão, Luís Pereira, Dudu, César, Leivinha e evidentemente Ademir da Guia.

Mas não sei porque, batia uma emoção em mim, guardada secretamente e nunca revelada, quando eu via Rivelino em campo. Eu me identificava com a marra, energia e cara de bravo dele (Ademir da Guia era muito bonzinho). 

Quando eu via Rivelino na seleção, que é de todos (bom, era naqueles anos, hoje só têm jogadores estranhos e que nunca ouvi falar), me sentia livre para torcer.

Uma quarta-feira à noite. Eu tinha de 8 pra 9 anos, torci demais por Rivelino e apenas aumentou minha admiração por meu ídolo. Um jogador do Uruguai, Ramirez, bateu em Rivelino num jogo no Maracanã. E Rivelino não deixou barato, correu atrás dele para revidar. Ramirez correu de Rivelino e na descida do túnel escorregou escada abaixo. Que glória!

Sempre achei que faltasse isso para as seleções brasileiras do Tite, as duas que perderam melancolicamente as duas últimas copas. E vi de sobra este espírito na seleção de ontem à noite do Diniz. Gostei do que vi. Mas é evidente que não é só disso que é feita uma seleção. É preciso esquema tático, padrão de jogo, saber como chegar ao gol adversário e como evitar que ele chegue ao “nosso” gol, mas sobretudo talento. Que tristeza ver o quanto são limitados esses caras estranhos que povoam o meio-campo da atual seleção!

Depois de anos vi um jogo inteiro da seleção, esse que a Argentina ganhou ontem, e o que mais gostei foi que isso me permitiu lembrar daquele Rivelino correndo atrás do uruguaio que escorregou túnel abaixo.

Espero por ver o que os próximos jogos da seleção reservam a mim… 

Bom… me parece que os próximos jogos podem me reservar novos encontros entre os fatos, que são a realidade de um momento, e as invenções da minha memória. 

Com o que me deparo ao buscar a foto do Rivelino correndo atrás do uruguaio? Justamente com o fato: Foi Ramirez quem correu atrás de Rivelino. “O lateral ganhou fama depois de correr atrás de Rivelino no jogo entre Brasil e Uruguai, no Maracanã, realizado no dia 28 de abril de 1976. Ramirez tentou agredir o meia-esquerda, mas não conseguiu. Mais rápido, Rivelino desceu (escorregando de nádegas) a escada que dava acesso aos vestiários…”, diz o noticiário.

Por que eu tinha registro do contrário?

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