Macaron blueberry

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Quando eu era criança, não havia dentista e nem livraria ao alcance de quem morava na Vila Santana.

Foi na escola, em 1974, quando inaugurado o novo prédio da EEPG Prof. Genésio Machado, na esquina das ruas Miguel Sutil e Piratininga, que vi pela primeira vez uma sala de dentista. A cadeira mais parecida com aquela que eu já havia visto era a do barbeiro. 

A sala do dentista tinha lugar de destaque no térreo, onde estavam a diretoria e secretaria. O som do motorzinho ainda ressoa atingindo minha alma nos dias de hoje. 

Era o período do general Emílio Garrastazu Médici. 

Havia preocupação com nossos dentes. Hoje, há um dentista em cada esquina de Sorocaba. As pessoas não são mais banguelas. Rico ou pobre têm bons dentes. A água da torneira não só é tratada e boa para consumo humano como também é fluoretada, o que garante dentição sem cáries. 

Eu comia tanto doce… Eu os furtava da vitrine do bar que meus pais tinham no cômodo da frente de casa… Meus dentes de leite eram pequenininhos e cariados.

Também naquela época, não havia livros. 

Uma vez por ano, meu tio Zé trazia gibis e almanaque para meu irmão mais velho. Minha mãe os escondia. Sua preocupação era que o gibi (ou a leitura?) subvertesse meu irmão… Que ele ficasse lendo e… Nunca soube o que se passava na cabeça dela, do que ela tinha medo. 

O mantra, para todos os cinco filhos era único: Trabalhe e seja honesto. 

Eu, que roubava doces, passei a roubar a leitura dos gibis, pois eu lia e os colocava no mesmo lugar como se nunca tivessem sido tocados.

Um dia… E o tempo tem sempre um dia, um dia que muda o tempo e um tempo novo se inicia… (Li isso quando criança em algum livro…) chegou um caminhão na escola. E dois homens tiraram algumas caixas de papelão. Dentro das caixas haviam livros. E numa das salas, como aquela do dentista, “nasceu” uma biblioteca. Alguns dos livros que chegaram no caminhão foram colocados em cima de um balcão, apoiados na parede. A maioria nem saiu da caixa.

Não fez sucesso algum. Se a sala, cadeira e som do dentista envolveram alunos, professores e direção, os livros não causaram nenhuma comoção. 

Não me lembro de uma segunda vez da professora nos ter levado lá. Mas lembro que ali, na sexta série, com 11 anos, peguei “Dom Casmurro” e descobri Capitu e Bentinho. E também Machado de Assis. 

Chegaram os anos 80 em Sorocaba e com eles um consultório de dentista aqui e outro ali. Mas nenhuma biblioteca ou livraria. Chegou o século 21, ano 2022, há um consultório de dentista em cada esquina dessa cidade. Mas livrarias…

O regime militar plantou o cuidado com os dentes. Ensinou a escovar, tratou a água, fomentou a formação de dentistas. Mas ignorou os livros. Os governantes civis que sucederam o regime a partir de 1985 seguiram sem uma política de leitura. 

O brasileiro que aprendeu a cuidar dos dentes, segue ignorando a literatura. 

Sexta-feira, com minha neta, fui à única livraria de rua da cidade. Peguei ela na escola e chegamos 18h na Nobel, rua Barão de Tatuí. O estacionamento estava lotado de SUVs. Dentro, o espaço de livros, vazio, mas o café, cheio. É um caso atípico, penso. Uma livraria que não vende livros, não porque não os tenha, mas porque seus frequentadores não compram. Eles vão lá tomar café. Na mesa ao meu lado estão nove mulheres, faixa etária da minha geração, dos 55 aos 65 anos. Todas perfumadas. A mistura de cheiros me dá alergia e eu começo a espirrar. Todas exibem dentes brancos, não brancos dente, mas um azulado. Esse da moda. Do clareamento. Elas criticam Bonner e Renata Vasconcelos. Segundo ela, os dois pegaram leve na entrevista com Lula. Ouço uma delas dizer que o Bolsonaro, naquele dia, sexta-feira, dia 26 de agosto de 2022, havia dito que acabou a fome no Brasil. A mulher diz e os outros escutam essa mentira como se fosse verdade. 

O trabalho iniciado em 1974, sem dúvida, deu resultado! Essa mesa ao meu lado é a prova disso. 

Elas também comem pudim de pote (meu doce preferido dali) e, claro, devoram o sucesso da livraria: Macarons (na aparência é como uma espécie de suspiro, aquele de clara de ovo batida em neve com açúcar e depois assada, mas é um biscoito de farinha de amêndoas, especialidade do interior da França).

Minha neta, aos 8 anos, está interessada no livro “Diário de um Banana”, o de capa azul. É uma coleção. São 14 no total, ela me diz. Lê com um interesse que me dá orgulho. Depois de ter comido dois macarons, ela me pede: Posso pedir mais um? Esse de blueberry (mirtilo) é uma delíciaaaa… Ganha um livro quem acertar qual foi minha resposta.

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