Morre o maior de todos os provocadores de Sorocaba, que “jogou futebol”

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Um câncer fulminante, que atingiu suas artérias, matou em menos de três meses o Zeca, José Carlos de Campos Sobrinho, o mais livre pensador da cidade, pessoa de raríssima cultura, engraçada, irreverente, cultivador e propagador de conceitos não-convencionais sobre o corpo, a vida, a morte.

Médico, patologista, escritor, pesquisador, historiador, psicoterapeuta, psicanalista, articulista… são títulos que, apesar de muitos, ainda são poucos para explicar essa figura ímpar de Sorocaba que frequentava a Igreja Presbiteriana, onde está a raiz de sua família, uma das fundadoras do Hospital Evangélico de Sorocaba, e defendia o ecumenismo religioso. Ele e Adolfo Frioli são autores do livro “O Nascimento de uma Religião” sobre João de Camargo, místico retratado no filme Cafundó de Paulo Betti.

Frequentei a casa do Zeca e da Cleidinha, ali na praça Nova York, em três momentos bastante distintos. Em torno de 1985, quando ele trazia a Sorocaba a chamada “Somaterapia” – processo terapêutico-pedagógico, realizado em grupo e com ênfase na articulação entre o trabalho corporal e o uso da linguagem verbal. Foi criada no Brasil pelo escritor e terapeuta Roberto Freire, a partir da obra de Wilhelm Reich e sua pesquisa sobre corpo e emoção. Nessa época tive meu primeiro contato com o livro “Escuta, Zé Ninguém!” Haviam saraus memoráveis na casa deles nessa época. Pessoas de São Paulo vinham para Sorocaba e quem teve o privilégio daqueles momentos sabe da importância dessa mistura de cultura.

No começo dos anos 90, quando Sorocaba vivia um verdadeiro boom de produções teatrais e eu escrevia sobre isso no Mais Cruzeiro, também estive próximo dele e da Cleide. Por fim, no começo dos anos 2000, voltei a frequentar a casa do Zeca, uma época em que a Cleide já era doutora em Comunicação e Semiótica e eu engatinhava no meu mestrado. Os encontros das quintas-feiras eram sempre recheados de comida, vinho, mas de um estranhamento desprovido de competições intelectuais. Me lembro do diretor e ator Mário Pérsico, da artista plástica Lulé Castilho, a bibliotecária Marisa Pelegrino e de outra dezenas de pessoas que agora o nome me foge.

Ninguém conseguia ficar indiferente à personalidade do Zeca: ou o amavam ou não o levavam muito a sério. Seus colegas médicos em particular se assustavam com o seu desprendimento em relação a duas coisas: 1ª) Dinheiro. Zeca, creio, foi o único médico pobre que conheci. Não pobre, obviamente, mas não aquele investidor e empreendedor que acumula riqueza com o seu trabalho. Ser médico é sinônimo de ótimo salário, no mínimo. 2ª) Sua reserva quanto à indústria farmacêutica. Dizia que o mercado tinha feito dos médicos propagandistas dos laboratórios farmacêuticos.

Esse segundo tópico se acentuou quando ele deu uma entrevista à jornalista Deise Machado de Oliveira, publicada no Mais Cruzeiro, dizendo que a Aids (naquele final dos anos 80 ainda algo bastante aterrorizante e desconhecido)  era uma invenção de laboratório, tecendo severas críticas a Robert Charles Gallo, médico estadunidense que ficou conhecido como um dos descobridores do vírus do HIV. Foi uma das maiores polêmicas médicas da cidade. Os médicos da Maçonaria, mantenedora do Cruzeiro do Sul, eram abordados onde iam, cartas chegavam ao jornal. As críticas não se dirigiam somente ao Zeca, mas também à jornalista, aos editores e aos diretores do jornal por terem dado espaço para aquela provocação.

Sim, esse é o Zeca, um provocador.

Fez isso várias outras vezes como, por exemplo, quando se insurgiu contra o fone 181 criado pela Polícia Militar para receber de maneira a deixar anônimo o autor da ligação denúncias contra outras pessoas. Ainda hoje em operação, o fone tem o intuito de ajudar na investigação de crimes. Mas Zeca, que havia sido jovem durante o Regime Militar, alertava que tal fone poderia ser usado para denuncismos contra alguém que fosse desafeto do denunciante. Sempre ligado ao seu tempo, em 2010 em entrevista à extinta revista Bianchini, quando perguntado sobre o comportamento das pessoas na internet, que se escondem em avatares para se manifestar, disse: “(…) as pessoas mais introvertidas, mais fracas, de personalidade mais moderada, de se impor, são elas que se tornam mais loquazes no computador. A pessoa que já cresceu, já existe no mundo real e ela faz as coisas que deseja, ela não tem necessidade de se esconder atrás do anonimato para tentar buscar alguma(…)”

Sim, Zeca, um observador.

As pessoas que tiveram o raro prazer de tê-lo por perto, mesmo que em épocas datadas, aprenderam que ele via os fatos em seu limite, às raias do fatalismo. Minha compreensão é de que assim agia pois achava que na melhor das hipóteses, não se podia interferir nos acontecimentos, talvez apenas minimizá-los. Um dia, que achei que estava morrendo, liguei desesperado ao Zeca. Ele fez duas ou três perguntas e ao final das minhas respostas receitou Gatorate.

Sim, Zeca, um livre pensador que não se interessava em provar nada.

Na década de 80, na primeira eleição com o advento da TV – hoje as redes sociais ganharam papel relevante – para prefeito de Sorocaba Zeca e Cleide abriram sua rede de convívio para Hamilton Pereira, candidato do PT. Os conservadores da cidade não se conformavam com aquela decisão. Hamilton quase venceu Paulo Mendes. Foi a única vez que o PT foi ao 2º turno e esteve perto de interromper a hegemonia ideológica que administra Sorocaba. Isso não impediu que anos depois Zeca estivesse com Paulo Mendes na mesa dos trabalhos na posse de Crespo (o prefeito cassado) no Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Sorocaba, na cadeira de Paulo Tortello. Aliás, saudoso Paulo, o poeta maior de Sorocaba.

Sim, Zeca, o espírito aberto.

Sem ser competitivo, Zeca conseguia ser estimulante e abriu portas físicas, espirituais e do conhecimento para uma leva de gente. No artigo “O Cavaleiro do Deus Sol” (https://www.facebook.com/notes/celso-font%C3%A3o-jr/o-cavaleiro-do-deus-sol/939037872818019/), onde escreve sobre Bohdan Wijtenko, Zeca diz: “(…) na época em que o conheci, assim o fiz porque havia, para mim, a necessidade de manter contato com alguém que conhecesse esse campo do saber cercado de mistérios e fora dos programas acadêmicos das universidades: a Iluminação. Eu queria aprender mais sobre a Kundalini, esse caminho interior da descoberta de si mesmo, da dissolução do Ego e do brotamento do Self (…)”

Sim, generoso.

Zeca trouxe à luz, ao menos entre o cidadão comum, Walter Edgard Maffei (Salto, 15 de janeiro de 1905 — 10 de setembro de 1991) médico patologista brasileiro, seu professor na Faculdade de Medicina de Sorocaba, que trabalhou como Chefe de Laboratório do Hospício de Bicêtre na França. Maffei é o nome de uma cátedra no Instituto Histórico, graças a Zeca que faz perpetuar sua contribuição ao conhecimento.

Zeca morreu na madrugada de hoje, 13 de agosto de 2019, dormindo, aos 74 anos. Muito jovem para quem ainda tinha muito o que fazer.

Glauber Piva, amigo em comum, ao me dizer sobre seu velório (Cemitério Pax até às 20h de hoje. Seu corpo será cremado amanhã às 11h no Memorial Park) me lembrou que Zeca lhe confidenciou, certa vez, que gostaria que o seu epitáfio fosse: “Jogou Futebol”. Uma das fotos desta postagem é de Zeca, no time da Faculdade de Medicina, em 1966, no Ginásio Municipal de Esportes.

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