Morrer fora de hora

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Quando a agulha entrou na minha veia e o vermelho escuro, cor dos Fuscas dos ano 60, correu pelo duto cilíndrico e emborrachado até a bolsa onde ele será armazenado e então doado a um anônimo numa cirurgia ou a algum outro anônimo que faz tratamento contra alguma grave doença, minha pressão estava em 15×9. Algo fora do comum em mim, que é 12×7 ou 12×8, que é o “normal”. Minha pressão, ao menos, é normal. Ou vinha sendo.

A pressão arterial é a força que o sangue exerce sobre as paredes das artérias à medida que é bombeado pelo coração. Qualquer medida acima desse parâmetro 12×8 pode provocar dois efeitos dramáticos: Infarto ou AVC. Nos dois casos o fluxo de sangue bombeado para o corpo é interrompido e a intensidade dessa interrupção causa o problema. 

Não estou sob nenhuma hipótese apto a enfrentar qualquer tipo desses problemas. Não imagino se um dia estarei. Ter um infarto ou AVC significa, basicamente, interromper o tipo de vida que levo para me dedicar a um tipo de vida imposto pelas sequelas das doenças advindas da pressão alta. É uma mudança drástica.

O corpo é cultuado por muita gente neste século 21. De modo exagerado no meu entendimento. São pessoas que organizam a vida a partir da academia de ginástica. É uma imposição da cultura contemporânea pelo corpo belo. Mas isso não atinge a maioria das pessoas. A maioria ainda ingere muito mais calorias do que é capaz de usar. E engordam. E as veias entopem. E a pressão sobe.

O frio, que neste ano apareceu em março e ainda se faz presente em pleno agosto, algo que não ocorria há duas décadas, piora tudo isso, pois as veias se contraem. É lógico, mas isso não significa que eu tenha levado em conta que fosse me atingir, afinal nos últimos cinco anos minha pressão funcionou como um relógio suíço, tamanha a precisão de seus 12×7 ou 12×8.

O 15×9 é fruto da abrupta interrupção do exercício físico, que há 11 meses eu abandonei por completo e de 15 dias sem remédios preventivos, algo necessário para que eu doasse meu sangue. 

A verdade é que qualquer mudança, como esta de minha pressão arterial, é o lembrete: Não sou dono do meu corpo. Ou dito de outro modo: Minha mente, meu pensamento, meu desejo… nada muda meu corpo. Apenas meu corpo muda meu corpo. 

Aos 58 anos, não me reconheço no espelho. Quem é este cara? E não é a careca que me incomoda, mas o nariz e as orelhas. Simplesmente, não param de crescer.

A morte, algo que nunca fez parte de minhas preocupações, está dia-a-dia mais presente. Tenho pensado em tudo que ainda há por fazer. E estou me organizando para não morrer fora de hora.

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