Quando minha neta de 9 anos (agora também tenho uma mais nova, de apenas 20 dias de vida completados nesta quarta-feira) me perguntou se eu queria ouvir uma piada, eu lhe disse de bom grado, e entusiasmado, que sim.
Ao final do relato dela, eu estava muito feliz. O que ela chamou de piada se tratou, na verdade, de uma estória. Houve a apresentação da personagem (um homem que dirigia um carro numa estrada à noite), um acontecimento (o carro quebrou na porta de um convento, sic, de monges e ele dormiu lá) e um mistério (o homem acordou com um barulho atrás da porta). No final (a estória se desenvolve em looping, após o suspense de toda trama), minha neta pergunta qual é o mistério (ou o barulho atrás da porta)… E o desabrochar é absolutamente pertinente. Inclusive cômico, o que, certamente, fez ela chamar de piada a sua estória.
Fiquei muito feliz com a capacidade de minha neta lidar com toda narrativa e, principalmente, entonação interpretativa do que ela contava. Fiquei orgulhoso do sucesso da empreitada dela.
Então, pensando, tentei em vão me lembrar quando contei uma história pela primeira vez.
Eu fui bom ouvinte e “viajava” nas histórias.
Na Vila Santana, quando tínhamos por volta de 10, 11 anos, sentávamos no chão, na sarjeta de alguma esquina da rua Moreira Cabral (o movimento de carros era quase nulo) e alguém sempre contava alguma coisa. Era o momento de se atualizar, de aprender e trocar “conhecimento”, ou seja, algo análogo ao que são as redes sociais nos dias de hoje. Não raro, quando alguém se enchia de coragem pra contar algo e se perdia na condução da narrativa, era vaiado e levava um monte de tapas na cabeça. Nada que machucasse fisicamente, mas que deixava marcas no intelecto de cada um.
A grande diferença é que sentado na sarjeta alguém sempre tinha algo a contar. Fosse alguma coisa que sentisse, tivesse visto ou até ouvido de outras pessoas, não importava, pois estava ali presente a narrativa. A rede social empobreceu isso. É raro alguém contar algo de si, pois o copia e cola é predominante. Pior, a opção por uma foto, o que até pode ser algo bacana, ou meme aniquila a possibilidade do real sentido de contar uma história que, em si, é apenas o ato da contação seja do ponto de vista do narrador ou do ouvinte.
Quem viaja tem o que contar, pois viu e experimentou coisas novas. O ouvinte anseia pelo extraordinário. Mas quando conseguimos contar nossa rotina, ou seja, o que é ordinário, também nos conectamos com quem nos ouve.
Essa conexão é o que dá sentido à existência.
Entre as coisas novas do século 21, a que mais perdeu importância na vida das pessoas é o ato de contar e ouvir histórias. Ao menos essas histórias da experiência ou vivência do contador.
“Mil e Uma Noites”, suponho que todos ouviram algo a respeito dela, é ainda o grande exemplo do poder da narração.
Me aproprio de um trecho bem didático, publicado no Jornal Nexo (https://www.nexojornal.com.br/externo/2022/03/13/Controv%C3%A9rsias-na-hist%C3%B3ria-do-%E2%80%98Livro-das-mil-e-uma-noites%E2%80%99), sobre esse livro: “Obra sem autoria definida que tem suas origens em tradições orais populares persas e árabes no século 9, o “Livro das mil e uma noites” parte de um conto-moldura sobre a história do sultão Shahriar. Depois de descobrir que a mulher o traiu com um escravo em meio a uma orgia, ele decide se casar, a cada noite, com uma jovem diferente, assassinada ao amanhecer. Um dia, Sherazade, filha do grão-vizir, se oferece para a noite seguinte com o propósito de interromper o ciclo de vingança. Contando histórias que cativam o sultão, ela adia sua morte indefinidamente.”
Uma metáfora e tanto! Tão válida ainda hoje.