Não tinha como eu saber que na noite do dia 24 de dezembro de 1973 eu experimentaria um sentimento pleno de alegria, o mais próximo de inocência que já cheguei.
Eu tinha apenas 6 anos, idade onde só existe o presente.
Demoram-se anos para se perceber o passado.
Não havia ainda a consciência de que minha chegada havia tumultuado o ambiente de casa. Havia a pureza de eu não me perceber e não saber o que esperavam de mim e nem que havia um modo certo de como eu deveria me comportar.
Não sabia, ainda, o que eram deveres. Eu acordava, brincava, comia, dormia…
Naquela noite, a agitação típica da época compunha a sala de casa, local que me lembro onde todos estávamos. O que é estranho, pois sempre estivemos na cozinha. E mais estranho pois não me lembro quem eram todos que estavam lá.
Também me lembro de sentir um clima de tranquilidade em casa naquela noite. O que também é estranho.
Havia desaparecido a tensão, característica do que me lembro, de minha casa (Minhas irmãs insatisfeitas com meu pai; meu irmão contestando a repressão que lhe era dirigida; meu pai infeliz com suas idas e vindas do açougue…)
Era tudo racional em casa. Não havia nada lúdico. Nunca se usou a expressão “olha o que o papai Noel trouxe pra você…” A religião era a única fantasia da família. Era levada a sério. Deus, Cristo e santos não eram tratados como representação, mas como viventes. Como se de fato eles estivessem entre nós. Observando e julgando cada um de nossos atos.
Mas naquele Natal de 73 eu ainda não estava afogado nisso.
A agitação havia se tornado calmaria. O meu pai, que sempre estava sentado, porque sempre estava cansado, havia ficado em pé. Ele, que sempre estava calado, falava e interagia. Ele que sempre estava sisudo, ria. Ele olhava para minha mãe e ela devolvia o olhar. Havia um clima de ternura.
A bola de capotão, os indinhos do forte apache, o caminhãozão de plástico vermelho dos bombeiros, todos presentes que ganhei naquele Natal, ajudaram a moldar meu estado de espírito, iludindo a mim próprio, me desligando do ambiente adulto de onde eu morava. Mas não tanto a ponto de que eu não percebesse que a felicidade havia entrado em casa naquela véspera do Natal de 1973.
Na manhã seguinte, pulando, falando alto, chamando a atenção… eu tirei minha nonna do sério a caminho da missa na Igreja Santa Rita. Ela ficou tão brava comigo na calçada da rua João Nascimento… Me senti insignificante diante de sua saia preta, de seu cabelo preso num coque, de seu olhar furioso que atravessava as lentes grossas de seus óculos. Ela iria morrer no ano seguinte sem me dar tempo de reconciliação para obter sua aprovação…
Fui reviver um sentimento próximo a desse Natal, em 1979, quando eu tinha 12 anos, e meus pais começaram a ir na missa do domingo à noite na Catedral. Só isso, sair da Vila Santana, já era um passeio para eles e para mim. Comer pizza, no Passarinho, depois da missa era aconchegante e acolhedor. Não durou muito. Não me lembro se meus pais continuaram com esse hábito, mas aos 13 anos eu já não acompanhava eles. Eu tinha “ficado grande”, inclusive do ponto de vista dos hormônios.
O Natal seguiu sendo o que sempre foi, um momento do ano especial para os cristãos e para o comércio. Esse é o fato. Mas mudou o sentido de minha interpretação da data. Se tornou com o passar dos anos a impossibilidade de sentir o que senti naquele 1973.
Hoje é apenas um momento de recolhimento. De introspecção. De distanciamento da rotina. De rever amigos. De rememorar. É uma possibilidade de chegar perto de quem, de fato, eu sou.