A Abolição da Escravatura foi o acontecimento histórico mais importante do Brasil após a Proclamação da Independência, em 1822. No dia 13 de maio de 1888, após seis dias de votações e debates no Congresso, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, que decretava a libertação dos escravos no país.
Assim me foi ensinado na escola quando eu era criança. Assim está escrito nos livros oficiais de História. Assim o branco, o senhor da Casa Grande, nos contou com a intenção de que a gente acreditasse que foi o que de fato aconteceu.
Porém, não foi bem assim.
A seguir, um pouco da história na visão de uma descendente de escravos.
Por Maria Teresa Ferreira
Amanhecia 13 de maio. A senzala vazia guardava lembranças dos amores que não vingaram, dos filhos que se foram ou morreram às vezes os dois respectivamente. As palhas espalhadas pelo chão guardavam o odor e as manchas do sangue, misturados aos ungüentos das pretas benzedeiras para curar as feridas do açoite.
Corpos pretos como a noite marchavam rumo à liberdade. Homens, mulheres, velhos e crianças, se dirigiam ao grande e proibido portão que outrora sua simples visão contraditoriamente trazia a mente o medo e o desejo de ultrapassá-lo.
O caminho naquele momento significava a materialização do esforço de muitos que já não estavam mais ali.
Levavam dentro de si muito mais do que tinham nas sacolas improvisadas de sacos de batata e de lençóis surrupiados da casa grande. Estavam transbordando os sonhos desenhados nas cabeças trançadas. Linhas que estrategicamente traçavam caminhos para lugares onde eles pudessem estar mais perto das suas memórias e da sua humanidade.
As batalhas que travaram tinham o saboroso gosto da vitória, o tronco, o chicote e a maldade ficariam para trás, assim que o portão fosse cruzado. Eles cantavam cada um em seu dialeto, alguns me português, isso não importava, porque todas as vozes vibravam em notas de felicidade. Eu imagino tenha sido assim o dia em que a Lei Áurea foi assinada.
Diferente de mim, aquela massa de pessoas desprovidas de nome e humanidade, desconhecia os tratados e os interesses internacionais que motivaram a lei áurea e isso faz toda diferença.
Hoje é possível entender as conseqüências da falta de planejamento e de leis que pudessem dar sustentação a autonomia e liberdade aquele povo preto. A população negra além de ter a diáspora como herança e as marcas indeléveis deixadas pelo período da escravidão, convive com uma data que antes de Achille Mbembe, já autorizava a necropolítica.
O 13 de maio é mais uma fraude da política e da sociedade brasileira, que não materializa suas leis através de ações concretas que garantam as elaborações constitucionais vide a lei 1063 e o Estatuto da Igualdade Racial.
Ecoa a energia e a força do povo preto que ultrapassou o portão da casa grande, sem rumo ou futuro e ganhou o mundo. Vibra a energia e a força dessas pessoas que ultrapassaram o portão da casa grande e ressignificaram sua existência se transformando em semente que se plantou em terras brasileiras e com a mesma força que enfrentou o trabalho duro da lavoura luta contra o seu próprio genocídio.
Ouço os cânticos das plantações se aproximando do portão.
Reverencio os mais velhos e o agradeço os mais novos por ver neles o futuro. Reconheço-me em cada traço daqueles que caminham. Minha voz se junta à deles no brado de liberdade que logo menos chegará. Iluminará.
Kao Kabecile!*
Maria Teresa Ferreira é do Conselho Municipal de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra de Sorocaba; conselheira da Unegro (União de Negros pela Igualdade de Sorocaba) e militante do movimento social e luta antirracista da Região Metropolitana de Sorocaba.
* Expressão em nagô que significa “venham saudar o rei”. Essa expressão é usada quando o Orixá Xangô vem à Terra, pois reza a lenda que ele foi um importante rei de Oyó, o qual governou de maneira muito justa. Xangô é o orixá responsável pelo trono da justiça divina. Por isso termino o texto com essa saudação, em referência à justiça que será feita ao povo negro.