Morreu hoje (19 de dezembro) aos 92 anos de idade Francisco Brennand, considerado o maior escultor vivo do Brasil, artista plástico ímpar que transformou a cerâmica (barro cozido e assado em grandes fornalhas) em objetos que pulsam e se transmutam dependendo do interlocutor a ter contato com ela.
E como a Madeleine do livro de Proust, ao ler desse fato ao acaso, numa publicação do amigo Will em sua página do Facebook, um sabor do único encontro que tive com ele me veio à memória como se tivesse sido ontem.
Na verdade, fui coadjuvante nesse referido encontro.
Era dia 10 de setembro de 2001 (e sei da data apenas porque no dia seguinte, 11 de setembro, haveria os ataques às Torres Gêmeas, fato que mudou o século 21) e eu e a Deise, minha esposa, estávamos em férias no Recife. E foi a Deise que quis ir até o ateliê e me falou quem era Brennand. E pegamos um táxi e o motorista, então, foi o primeiro a nos dizer um pouco sobre quem era o tal Brennand, não apenas porque havia fila de turistas, artistas e curiosos que iam ao seu encontro. Mas ele nos alertava de que o ateliê não era um espaço aberto, mas uma propriedade particular e que não raro as pessoas davam com a cara na porta, pois Brennand não atendia ninguém. O taxista, então, deu a entender o quanto ele era estranho.
E não dá para desautorizar, completamente, aquele taxista. Num dado momento, quando sua produção artística começava a fervilhar e ele tinha que produzir, extravasar aquela força interior que impulsiona um artista, Brennand passou a ser um frequentador da zona portuária do Recife, buscando mulheres fartas, sexo exagerado, enfim, elementos da sua obra.
Quem chega ao pátio central da Oficina de Francisco Brennand, localizada às margens do rio Capibaribe, se encanta pela grandiosidade. Bom, eu me encantei. Deise ficou hipnotizada. Num vasto espaço (talvez maior do que dois campos de futebol juntos) incrédulos, nós visitávamos o templo onde estão presentes a arte de civilizações antigas. No centro do pátio está um ovo pendurado num cabo de aço, chama o olhar do visitante. Representa a origem da vida.
E quem veio ao nosso encontro, foi Brennand. Ele e a Deise entraram em sintonia rapidamente. Conversavam como velhos conhecidos. Tinham familiaridade na essência que move o artista a fazer. Fui me afastando, e como um voyeur vendo Deise e Brennand frente a frente. Eles nem mais notavam minha presença numa espécie de jardim de inverno, com o chão todo gramado, cercado de paredes, mas de céu aberto.
Poderiam ter passado o final da tarde e anoite ali se eu os tivesse deixado. Mas me fiz notar. Brennand, então, mudou sua conexão e passou a nos tratar com deferência, atenção e explicando como cozinhava sua obra: Depois de modelada, a obra vai para uma fornalha com 1.400 graus de temperatura. Cada peça fica exposta ao calor durante 24 horas, retornando ao fogo inúmeras vezes até chegar ao ponto de parecer uma rocha vulcânica…
O resultado impressiona. As cores são raras e únicas. Algumas de suas peças estão no moderno edifício do Sesc em Sorocaba. Quem sai do vestiário da piscina e vira à esquerda para pegar a escada vai se deparar com uma parede que do cão ao teto é revestida com cerâmicas da oficina de Brennand. Originalmente, tais peças tinham uma vegetação, mas o Sesc, seguramente devido a manutenção, retirou já há uns dois anos todas as plantas do local.
Brennand vive numa parede do prédio do Sesc e nas memórias dos sorocabanos que, como eu e Deise, tiveram a chance de ser recebido por ele em seu mundo encantado. Essa visita foi mais um dos raros bons momentos que tive na vida graças à Deise, pois naquele dia, me lembro, havia me programado para ir à Ilha do Retiro, onde o time do Sport Recife receberia o Santa Cruz, num dos mais famosos dérbis do futebol brasileiro, desses que continuam tendo vai ano e vem ano. Se não tivesse ido naquele dia, e naquela tarde ao encontro de Brennand, nunca mais teria a oportunidade de passar as boas horas que passamos com ele. Sou grato por ter tido a chance de conhecer um verdadeiro artista, não apenas pela excentricidade de seus longos cabelos e barba brancos, não apenas por sua obra, mas pela sede de conhecimento que ele tinha.
FOTO – Como o bom desorganizado que sou para guardar coisas, apenas essa foto foi encontrada hoje na pressa, e mostra a visita aqui narrada. E ao contrário do que ela indica, de que alguém fez a foto, explico que foi tirada com o temporizador da máquina analógica, com papel filme. Uma espécie de selfie dos anos pré-Era Digital. Você clicava e tinha dez segundos para correr, se posicionar e sair na imagem.