Num sábado de janeiro de 1983, quente, abafado e de muito Sol, a dona Dirce, mãe do meu amigo Rinaldo, foi nos buscar na apinhada piscina do Estrada no começo daquela tarde e nos levou ao Senai, no bairro de Santa Rosália, em Sorocaba, para fazer uma prova. Não tinha ideia de que meu desempenho ao responder as perguntas que nos fizeram selaria todos meus anos seguintes.
Aprovados, viramos alunos. E vi interrompida ali, aos 14 anos, a minha infância. Como já estava “formado” na 8ª série, fui fazer o “colegial” à noite. Ou seja, além de ir ao Senai de segunda a sexta-feira das 7h30 às 17h, também iria à escola das 19h às 23h. Ao final, chegou a hora da faculdade, do mercado de trabalho e estou nesta rotina desde então.
A lógica da dona Dirce, combinada com a da minha mãe, era tirar dois adolescentes da rua e nos dar uma profissão. Se não quiserem seguir, não faz mal, mas pelo menos vocês terão um diploma, um ofício, vão arrumar um emprego… Esse discurso afinado da minha mãe e da mãe do Rinaldo, absolutamente lógico, nos motivava a ficar ali no Senai. Claro que receber meio salário mínimo por mês, aos 14 anos, para estudar, também era um motivo extra.
E o Senai tinha (imagino que ainda tenha) uma metodologia de ensino que visa dar aos jovens que ali ingressam conhecimento suficiente para entrarem na indústria e se tornarem o profissional necessário. Meu curso era de Mecânico Geral, minha indústria a BSI (atual Bardella, km 3 da Castelinho).
Mais que isso, o Senai moldava, modelava, adequava, enfim, formava o caráter dos adolescentes ali presentes. Todos meninos, diga-se de passagem. Rondello, Boff, Rita, Fátima, Gambaro, Zé Carlos e outros que vejo a imagem, mas não me lembro o nome, ensinavam senso de responsabilidade, de disciplina, obediência.
Eu me adaptei bem àquele ambiente. Muitos sofriam pela rigidez. Imaginem que toda manhã havia aula de Educação Física (professor Nilton?) e depois, obrigatoriamente, o banho era gelado. Na hora do lanche, apenas uma caneca de leite de soja!
Eu sentia falta de usar as habilidades ensinadas (limar, forjar, fresar, desbastar…) em algo criativo. Mas era claro que ali se tinha um compromisso: formar a mão de obra operária. Ninguém queria um artista e muito menos alguém que pensasse, criticasse, opinasse. Era urgente a mão de obra. A usina de Itaipu estava chegando ao final e era preciso que fossem soldar, na calderaria, aquelas peças gigantescas que estavam sendo feitas na BSI.
Ainda hoje tenho pesadelo com aquela ambiente da fábrica, onde chegava e saia sem ver o Sol, e chego a sentir o cheiro do aço quente…
Já existiu um “Senai” da criatividade
E me lembrei disso tudo ao ver que faltam apenas dez dias (termina no próximo dia 12) para se encerrar no Sesc de Sorocaba a exposição “Vkhutemas: o futuro em construção” que conta a história da escola soviética Svomas-Vkhutemas, um marco das escolas de artes e design mais importantes e influentes do século 20.
A história, criações e pensamentos da Svomas-Vkhutemas (1918-1930) é um exemplo do que o Senai poderia ser se entre seus objetivos estivesse algo além da formação técnica de um adolescente, ou seja, estivesse a complexidade humanista onde técnica e livre pensamento, juntos, podem criar um novo tipo de cidadão.
A escola Svomas-Vkhutemas (1918-1930) é um marco das artes, técnica, design e pensamento do espírito da Revolução Russa de 1917 que chegou ao fim pela visão totalitária e arbitraria de Stálin. Mas em sua década de funcionamento, se viu nascer o pensamento construtivista, em oposição ao racionalista, a partir da liberdade com que alunos e professores se inter-relacionavam Svomas-Vkhutemas, uma usina de modernidade e de avanços em relação ao conhecimento dominante.
Quem dera, um dia, o nosso Senai se torne um centro de experimentação, em que a técnica e a criação artística se vinculem a um projeto de uma nova sociedade, onde muitos, e não apenas alguns, se dêem bem.
“A exposição se afasta de uma proposta museológica, ou seja, da apresentação de obras originais. Nossa intenção era realizar um resgate histórico da Vkhutemas, com a reconstrução material dos acervos, e promover uma discussão ampla sobre as pedagogias e os processos da escola, que revolucionaram as artes e o design modernos e até hoje reverberam nas mesas de criação por todo o mundo”, explica Celso Lima, pesquisador da história do design e curador da mostra no catálogo da exposição.
Fica então a dica: Como disse, está acabando a exposição “Vkhutemas 1918-2018 — O futuro em construção” que pode ser vista de terças a sextas, das 9h às 21h30 e aos sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30. Entrada gratuita e livre para todos os públicos no Sesc Sorocaba (rua Barão de Piratininga, 555, Jardim Faculdade).