Trago comigo, recolhido em algum canto de minha memória, instantes que agrupados, um a um, como os tijolos que edificam as paredes de uma casa, me ajudam a entender um pouco quem sou.
Quando eu tinha 6 anos, em 1973, meu pai, açougueiro, chegava do trabalho no ônibus Circular 7 e descia no ponto bem em frente a casa da dona Bella. Se arrastava por 50 metros até chegar na sala de casa e se esparramar em sua poltrona. Então eu tirava de seus pés os sapatos, todo sujo do sebo da carne que ele separava da perna do boi que o caminhão do marchant lhe entregava; também tirava as meias e, então, apareciam os seus pés. Eram brancos, translúcidos, e possível de ver suas veias azuis. Então ele os mergulhava numa bacia de água quente, escaldante, com um bom punhado de sal, que minha mãe estendia a sua frente.
Me lembro do seo Roque, pai do Carlinhos, Fernando e Celso. Ele era padeiro. Assim como meu pai, seu horário de entrar no trabalho era bem de madrugada. Um dia, um tanto que de repente, saiu um estridente e desafinado som de corneta do seu quarto. Ele havia começado a aprender a tocar trompete. Foi um espanto. Não maior do que motivo: ele iria tocar na Igreja Cristã do Brasil, o que significou que ele havia deixado de ser católico. Ele sofreu por sua decisão e intolerância de nossos vizinhos da Vila Santana.
Na frente da sua casa, do outro lado da rua, morava o Zico, policial militar, pai do Edu e da Carla, que não deve ter memória dele, pois ele morreu cedo demais. Eu ia com minha mãe na casa dele. Ela lhe aplicava injeção todo dia. Insulina, acho.
Duas casas à esquerda, morava o Ibrahim, tecelão da Cianê, pai do Valdir, Sueli e Aline. Um dia, quando eu corria igual um desembestado na calçada, ele me parou e explicou que se eu fechasse os punhos, teria um melhor desempenho. Bondade dele, minha compleição física nunca me permitiu em esportes nenhum desempenho acima do mediano.
Tinha seo Ito, assim a gente falava, mas era Hilton, pai do Rinaldo e do Itinho, metalúrgico, trabalhou anos da Aço Paulista. Um dia, perto do Natal, ele atravessou a rua Moreira Cabral inteira sob os olhares de todos, pois trazia na mão uma sacola enorme, branca. Dentro, depois viemos a saber, havia o que podia existir de melhor no que hoje chamamos de Cesta de Natal. Minha primeira ida à praia, “sozinho”, aconteceu muito graças ao seu empenho. Ele me abrigou na casa que havia alugado em Mongaguá.
Tinha o seo Mário, funcionário público, pai da Ana, Valéria, Érica e Mônica. Por duas vezes, uma quando quebrei um braço e outra quando levei uma pedrada no olho, foi ele que me socorreu no hospital.
O seo Zé, pai do Antônio Benedito, Ângela, Romeu, Mário Lúcio, Luciane, Lucélia e João Eduardo, cobrador da mensalidade do clube, um dia, decidiu matar um leitão no seu quintal. Foi um acontecimento. Ele marcou três dedos embaixo da pata esquerda do bicho com a sua mão esquerda e com a direita, num gesto rápido, enfiou uma lâmina no coração do porquinho. O grunhido, um berro quase humano, me acompanha ainda hoje nos meus piores pesadelos. Em instantes, uma bacia estava cheia de sangue.
Tinha o seo Zé, pai da Dirce, pedreiro. Tinha o seo Zé, pai do Airton e Antônio Luiz, marceneiro. Tinha o seo Alan, pai da Rosana, Renato e Roseléia, caminhoneiro. Tinha o irmão do Tufi, o Zé pedreiro, pai do Djalma (Peta), Deise, Dirceu, Djair, Denílson e dos gêmeos Douglas e Diógenes. Tinha o Jorge careca, pai do Joe, ferroviário. Tinha o Luiz, pai do Marquinhos, policial militar. Tinha o Chicão, tapeceiro, pai do Edu e do Chiquinho. Tinha o Tiguera, seresteiro, pai do Beto, Ângela e Cristina. Tinha o Vadeco, presidente da Escola de Samba Show Brasil, pai do Nilson, Nilcéia, Nilton. Tinha o pai da Loira, que não me lembro o nome. Também tinha o pai da Alice, também não lembro o nome dele. Tinha o seo Zé Moscou, aposentado, pai da Teresa e do Messias. Tinha a Landinha, mas não me lembro do pai dela. Tinha seo Pedro, da Sorocabana, pai do Renato, Bertito, Reinaldo (Bacalhau). Um dia ele me levou com o maquinista. Adorava a mesa de escritório dele. Tinha vidro e embaixo cartões postais e outras imagens tão marcantes. Tinha o seo Candinho, sapateiro. Era viúvo, não sei se foi pai. Ele tocava clarinete, eu adorava, mas apesar de eu insistir, ele nunca me ensinou…
Essa série de pais da Vila Santana da minha infância e de tantos outros pais da minha vida, todos um tijolo no alicerce da minha história, adoçam minha caminhada e dão sentido a tudo que venho vivendo.
Mas nada, nem mesmo minha gratidão, é capaz de dimensionar a ninguém o privilégio de ter me deparado com cada um deles.
Viva os pais!