A morte de José Theodoro Mendes surpreendeu nossa comunidade no final da última sexta-feira, ainda mais pela forma trágica com que aconteceu, num acidente de carro, num local onde ele costumeiramente passava depois de sair da casa de um dos seus oito irmãos, no bairro Genebra, onde ia jogar cartas.
Theodoro, ou Português – como os mais íntimos se referiam a ele – resistiu à pressão dos aliados do regime militar e isso foi reconhecido pelo sorocabano que o elegeu vereador, prefeito, deputado com recordes de votos. Aqui ele fez obras que estão para a história e vão desde o Palácio dos Tropeiros – que por iniciativa da prefeita Jaqueline Coutinho deverá ter acrescido o nome de Theodoro a ele – até o estádio municipal, vias e avenidas.
Theodoro foi presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Constituinte que elaborou a atual Constituição brasileira; foi o responsável pela emenda que deu abertura ao voto direto (após negociações prevaleceu a chamada Emenda Dante de Oliveira, mas não fosse Theodoro e haveria um atraso nesse processo); teve participação primordial na chamada República Nova que se dá a partir da morte de Tancredo Neves e governo de José Sarney de quem, por circunstâncias palacianas, tão somente, não foi o ministro da Justiça embora tenha sido bem cotado para tanto.
Essa proximidade de Theodoro com a República Nova fez com que eu me tornasse um dos seus maiores críticos na imprensa sorocabana. Houve um período em que fora das páginas dos jornais (numa época em que não havia rede social) chegávamos a trocar cinco ou seis mensagens de e-mails por semana, e-mails extensos, carregados de adjetivos, acusações, críticas. Aos poucos a ferocidade foi se amainando e vimos, mutuamente, o que havia por trás de cada um de nós.
Compreendi o gigante Theodoro, articulador, que preferia engolir muitos sapos desde que tivesse a chance de construir um caminho que ajudasse a sedimentar a democracia no Brasil. Esse valor de respeito às individualidades, as diferenças, ao livre arbítrio, de permitir que cada um manifeste a sua crença sempre esteve com Theodoro em que pese ele nunca abrir mão de defender, com firmeza, uma visão contrária. Um exemplo: ele odiava tatuagem, mas nem por isso deixava de amar uma pessoa se essa, por ventura, tivesse tatuado o seu corpo.
A língua portuguesa foi outro ponto que nos unia. Theodoro era uma pessoa culta acima da média. Dava aula em Latim. Conhecia o vernáculo como poucos. E me cobrava, quando eu exercia o cargo de editor-chefe (tanto no Cruzeiro do Sul, mas especialmente no Bom Dia) que as edições tivessem menos erros. Tentava-lhe explicar as razões, mas ele – hoje vejo que com razão – me dizia que me faltava determinação e peito para resolver. Sempre priorizei a qualidade da informação, o ineditismo do fato, antes de uma revisão bem feita. Não precisa ter negligenciado esse ponto.
Me encheu de orgulho, certa vez, quando ele leu em sua rádio – com seu vozeirão grave – uma entrevista inteira que fiz com o Cripim, sorocabano, que fazia parte da banda que acompanhou Elis Regina em sua última turnê antes da morte. Crispim me atendeu em São Paulo e me relatou momento a momento uma parte da história dessa que foi, na minha opinião, uma das três principais intérpretes da música brasileira. Com a voz de Elis ao fundo, Theodoro leu cada palavra da minha entrevista com Crispim.
Na coluna O Deda da Questão na TV, já extinto, tive a oportunidade de gravar um programa inteiro com Theodoro em seu escritório na avenida Pereira da Silva. Foram reminiscências, análises, memórias, histórias. Foi uma reconciliação pública do respeito que eu já havia restabelecido por ele.
No final de 2019, ao acaso, ele me retribuiu de modo inesperado este carinho. Eu estava no gabinete da prefeita Jaqueline Coutinho e a audiência seguinte era com Theodoro. Nos abraçamos, tive a oportunidade de enaltecer o quanto importante ele foi para a democracia do Brasil, e ele se dirigiu à prefeita falando palavras bastante elogiosas sobre mim. Palavras que me encheram de orgulho. Palavras que levarei comigo com a missão de honrá-las sempre.
PS – De tantas histórias que tive com Theodoro, gostaria de registrar uma delas. Em 1978, Theodoro era prefeito de Sorocaba e eu tinha 11 anos. Eu era aluno da Escola Estadual de 1º Grau Professor Genésio Machado e tocava Zabumba na Fanfarra da escola. No desfile (não me lembro se de 7 de setembro ou de 15 de agosto, de aniversário de Sorocaba), o desfile descia a avenida Roberto Simonsen no Bairro de Santa Rosália e na altura da 14ª Circunscrição do Serviço Militar havia um palanque. Theodoro e demais autoridades estavam nele. A fanfarra pára afim de fazer evoluções. Eu era o primeiro na ponta direita, ou seja, estava bem próximo do palanque. A Zabumba é aquele instrumento grande, que pega toda a barriga e peito do instrumentista. Com a baqueta na mão direita se bate no lado esquerdo do instrumento e, acima da cabeça, gira ele até bater do lado direito. Pois bem, na volta da baqueta da esquerda para a direita ela escapa e simplesmente voa em Theodoro.
Eu e Theodoro rimos muito disso, mas na época tive que me explicar mil vezes com o diretor da escola, Jaime Germano, que não tive culpa, apenas aconteceu. Na época do regime militar, até de um menino de 11 anos se desconfiava que pudesse ser um subversivo.