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Quando eu ouvi aquele homem que até um mísero instante antes de eu entrar na sua sala estava deitado no amplo sofá que, nas centenas de outras vezes que eu estive ali, sempre achei um adorno do ambiente, sem que tivesse uso, e agora sentado nele, com seu cabelo desgrenhado de um lado da cabeça e amassado do outro, me falando, como um espécie de justificativa, de que ele tem passado o seu tempo ali deitado, local onde por seis décadas foi seu espaço de trabalho, esperando a sua hora chegar, modo de falar da morte que ultrapassa os séculos, e completado um quarto do século 21 essa expressão ainda é usada, e, ainda que ele está desligando os fios, uma espécie de dizer que desconecta sua mente de seu corpo, eu vi materializada diante de mim a pergunta: Quem somos nós? 

Nós, no sentido, num primeiro momento pensei tão somente no ser humano, mas me ocorreu que não só, mas nós seres vivos em geral, plantas, animais e minúsculos seres como a microformiga medindo micronésimos de milímetro que vi na parede do banheiro do apartamento onde moro há menos de um ano. 

Há dois de nós. O corpo é o 1 (um) e este sustenta o 2 (dois), o que está dentro dele e aprendi, embora esteja sempre em dúvida se é certo assim chamar, ser a alma. Essa, me parece, não passa por deterioração alguma, ao passo que o corpo está em decomposição contínua. E assim o corpo, hospedeiro da alma, tem a finalidade única de expulsar de si aquele que não vive, dizendo de forma mais real, não existe sem corpo. E, sentado naquele sofá, eu vi uma alma se entregar ao inevitável fim de todas as almas (a morte do corpo) dizendo que deitado no sofá tem desligado os fios que conectam, o que não pude evitar de pensar: Temos, então, algum controle?

A pessoa, aí não tenho condições da generalização aos seres vivos, se considera o que está dentro do corpo, ela é o que na falta de um termo melhor e que é o que aprendi, a sua alma, é o que acabo de ouvir de alguém que caminha para os 100 anos e mantém lúcida a consciência de sua mente e assim que acabo de falar isso me pergunto: Somos, dois, mesmo? 

E a resposta que me ocorre é que há o corpo (1) que hospeda a alma (2) que se torna possível através da mente (3). 

É isso que aquele velho, em breve centenário, naquele sofá com o cabelo desgrenhado e amassado falando que tem se debatido com o seu fim, denota para mim que chegarei daqui a seis meses na contagem regressiva dos meus 60 anos e tenho, enfim, dado um pouco de atenção ao meu corpo fazendo exercícios regulares, tomando remédios preventivos e evitando excessos que vinham se acumulando há décadas e ainda estão em meu corpo pesado pelo acúmulo de gordura, açúcar e toxinas. Com exercícios terei algum controle sobre o meu corpo e penso, então, ser isso (essa ilusão de que a alma e mente) o que nós nos temos ensinado, pois só isso a explicar que alguém a caminho dos 100 e outro dos 60 anos, de culturas diferentes, de descendência díspare, pensem de forma tão idêntica na relação entre o palpável (corpo) e o abstrato (mente e alma) e faz de nós humanos.

Então, vou à farmácia e na entrada, a fila para o caixa se forma num daqueles corredores cercados de prateleiras com vitaminas, produtos de higiene e até guloseimas, eu chego ao mesmo tempo que um homem na entrada deste corredor e eu cedo-lhe a passagem e ele cede-me a vez e eu insisto que seja ele e, então, ele propõe que a gente resolva no Par ou Ímpar a questão, o que claramente era figura de retórica, afinal não havia o menor cabimento aquele jogo, de modo que eu disse que o correto era que o de menor idade passasse e ele topou, não sem antes me perguntar a minha idade e quando lhe disse, resignado, ele aceitou a vez e disse estar com 85, a idade que, de fato, ele aparentava. Andamos pelo corredor para descobrir que havia duas moças com seus respectivos caixas abertos, o que nos levou a uma boa risada. Então ele me falou ter gostado de meu argumento de que merece a vez na frente da fila o de menos idade e eu ao ouvir menos, achei estranho, pois estava certo de ter dito menor e expressar ironia com isso, então ele argumentou sobre o menos e de que sua compreensão estava nos anos que ainda restam a cada pessoa e nesse sentido, tirando a fatalidade de se morrer atropelado, por exemplo, ou com uma bala perdida, em outro, ou engasgado… quanto mais aniversários já se fez menos anos lhe restam.

Já na rua ainda seguíamos jogando conversa fora e perguntei o que fazia e ele não me disse, embora tenha me falado assim: Trabalhei durante 35 anos embaixo de sol e chuva trepado nos postes da CPFL (a companhia de energia elétrica) e estou há 30 anos aposentado. Isso me levou a ficar mudo e mentalmente a calcular os dados que acabavam de me ser apresentados e antes de eu responder, pois nenhum som saiu de minha boca, o homem me respondeu com surpresa o que por minha feição naquele instante eu havia lhe perguntado: Mas o que fez e faz nesses 30 anos e ele decidiu dizer que estava cansado e eu lhe disse, então, que é isso o que o capitalismo faz, tira das pessoas o que lhe há de melhor em sua juventude e nos deixa cansados com o salário de aposentado, que mal dá pra viver, sem oportunidade de criar ou viajar e então o homem, abruptamente, encerrou a conversa e entrou no carro e como se respondesse a quem estava no banco do motorista lhe dizendo: Ahhh, não é ninguém, é só um comunista, eu não o conheço. No caso, o comunista, sou eu que nem aposentado estou e nunca antes de quase chegar na contagem regressiva para os 60 anos de idade nunca havia pensado, muito menos desejado, se aposentar, pois trabalhar com o que trabalhei, organizando os fatos e transformando-os em notícia sempre me foi um prazer, mas, então, me lembro que isto acabou e não existe mais esse ofício desde o advento das redes sociais, local onde as pessoas simultaneamente produzem e consomem fatos, sem fazer deles notícia, ou seja, sem contexto, sem a veracidade de sua ocorrência, sem o peso de sua importância. E assim tudo o que eu sabia fazer se tornou obsoleto “de um dia para o outro” e agora, com dificuldade para pagar as contas do mês, prevendo que essa dificuldade vai aumentar, eu corro contra o tempo e tento me aposentar e, oxalá, isso seja possível para breve. Ao menos quando chegar aos 60.

Quando já estou em minha poltrona, sentado e buscando me desconectar da pressão que é o simples fato de estar vivo, ouço um barulho que já ouvi outras vezes embora não seja algo corriqueiro, o de entulho sendo despejado na caçamba de um caminhão que produz um som metálico de tijolo e pedra batendo contra o ferro e escorrendo na caçamba levantada. Pela janela, então, vejo que mais uma casa centenária de minha vizinhança foi ao chão deixando um rastro de poeira e indícios de sua centenária idade, são tocos de tijolos que não se fabrica mais, de uma robustez inexistente nos tijolos de hoje em dia, feitos para durar e duraram. Mais uma casa que foi abaixo e não saberemos nada do que se passou entre as suas paredes. Histórias silenciadas para dar espaço a um novo tempo. Como silenciados vamos sendo a cada nascer de um novo dia a partir do momento que tudo que passamos aprendendo ao longo da vida se torna inútil e, então, enfim, como com bastante clareza traz o substantivo de língua inglesa para o termo aposentado somos retiree. Sim, retirados. É isso o que somos literalmente falando: Retirados. Se pode espernear e adiar este momento, mas ele chega. E é pior do que a morte.

PS – A ilustração deste post foi capturada da internet e é de autoria de Andrea Antinori da www.lunetas.com.br

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