Somos o que estamos aptos a perceber

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Não me lembro do Natal ter chegado tão cedo como está acontecendo neste ano. 

Tampouco me lembro de ter ficado tão em segundo plano o Dia dos Mortos, o Finados, palavra nada usual no cotidiano. Na literatura de Machado de Assis era comum uma personagem se referir a alguém morto como o finado José, por exemplo.

Na farmácia, fico dentro do carro com janela aberta e um pedinte se abaixa ao meu lado. Não digo nada e nem ele.

Gostei do silêncio dele e peguei uma moeda, 1 real, e lhe dei. 

Estou precisando de um Dorflex e um desodorante, ele me disse. 

A palma de sua mão, vi quando depositei 1 real, eram amareladas, de pele grossa e calejadas. Seu cabelo já tinha muito fio branco. O branco de seus olhos também estavam  um tom marrom-verdeado. 

Seu rosto estava a 40 centímetros do meu. Não senti mau-cheiro algum. Neguei o que ele pediu. Então ele me pediu mais 1 real e explicou: Com 2 reais eu compro um Dorflex. Lhe dei.

Ele não se levantou. Ainda com seu rosto bem perto do meu falou que os tempos estão difíceis… Antes que eu pudesse ter dito qualquer coisa ele emendou: Agora essa guerra para atrapalhar tudo… Eu não havia esboçado abrir a boca e ele emendou: E esse Lula não faz nada. Tinha que ter perdido. Eu ainda sem reação e ele se foi. Em pé, me disse: Já volto pra gente continuar nossa conversa. 

Nossa?

Eu simplesmente não disse nada. A conversa era dele, apenas.

Na missa, homem cai na frente dos filhos e esposa. No dia anterior ele teve mal-estar. Antes de sair de casa e ir para a missa, novo mal-estar. Ele não entendeu o que seu corpo dizia. Teve três infartos e morreu durante a celebração no cemitério. 

. . .

Somos reféns de nossa percepção, ou seja, daquilo que estamos aptos a apreender, compreender, elaborar, sentir e desenvolver como nossa expressão.

Assim é com os detalhes de papais-noéis que nos cercam, com as pessoas ignorando o Finados, com um excluído se preocupando com a guerra ou entendendo que com o ex-presidente sua situação estava melhor do que com o atual… Com o corpo que fala, mas não o entendemos.

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